terça-feira, 16 de novembro de 2010

Saudades e retalhos

Fátima Quintas




Não faz tanto tempo que convivi com o poeta e amigo Mauro Mota. Parece que foi ontem, tal a vividez com que o conservo na lembrança. Eu era apenas uma adolescente à procura de mim mesma, uma procura que nunca cessou; prossegue com a mesma volúpia, pulsão inerente ao ser. Mas, de repente, cresci. Fiquei diferente. Somaram-se reminiscências. Sou o resultado de um tempo de memória. E recordo. Neste instante acodem-me os versos do poeta pernambucano: “Quero deixar-me longe. Separar-me/ de mim. Abandonar-me. Ser-me estranho./ Parto, mas, onde chego, me reencontro./Despeço-me de novo e me acompanho”.

As metáforas me levam à reflexão. A solidão é apenas física, nunca ontológica. Estamos juntos na multiplicidade dos eus. Em cada pedaço, uma partícula e, em cada partícula, a unidade. Contradição? Não há como fugir dos estilhaços que compõem o lastro existencial, por isso carrego as frações internas, algumas em sintagma, outras singularizadas, uma a uma, a desenhar uma paisagem plena de recortes.

Ando por aí, perseguindo o desejo de defrontar-me com os eus. E eis-me diante de um velho sobrado, desconhecido, anônimo. Olho-o. De novo reavivo imagens do poeta: “A sombra dele escorrega/ defronte, também, há três/ séculos, e escora a sombra de outro sobrado holandês.” Estou no bairro de São José; perscruto atentamente o casario longilíneo. O quadro em descompasso me aproxima, não me afasta. Prédios conjugados: alguns relativamente em forma; outros decadentes. Toda decadência tem um quê de dignidade porque se mescla com o mistério das coisas por findar, algo instigante, fantasmático.

Os fragmentos de mim, vejo-os; a exterioridade das paredes em declínio, também as vejo. Há uma fusão no cenário. Tijolos começam a desprender-se do velho sobrado, tão parecido à montagem do meu retrato. Estou em toda a parte e em lugar nenhum, e, no entanto, sou sólida catedral, porque existo, porque sinto, porque hospedo sentimentos universais. As palavras brotam, dispersas, à semelhança dos pedaços que me dividem e me multiplicam. Há um crescimento interior que ganha intensidade e volume à medida que o calendário avança. Já fui ontem; hoje, sou agora; e será que não serei futuro ao concluir esta frase? As minhas circunstâncias mudam, dia a dia os retalhos aumentam e acompanham-me para onde eu vou. O caro poeta tem toda razão. Quem disse que me aparto dos eus? Sou uma sombra no sobrado que me recebe em quietude. Sob a sua proteção, sinto-me companheira de todo o desmonte físico que o acomete. A desconstrução faz parte do próprio mundo. Do meu e do sobrado. O importante é vigiar com atenção os entulhos que se amontoam na caminhada.

A memória me agasalha na lembrança infinda. Mauro Mota indaga: “Que homens e passarinhos aqui germinarão?” A semente que fecunda está dentro de cada um, a alimentar o jardim das ternuras, a adubar emoções que explodem em outras plagas. A humanidade desabrolha ao surgir da alvorada, quando as esperanças renascem, grãos que frutificam a condição humana.

O sobrado sacolejou o meu nicho de saudades. Não sei bem por quê. Nem quero adivinhar. Basta-me compreender o que aparento e o que o sobrado expõe. Do lado de fora, o excesso de visibilidade; do lado de dentro, eu me escondo em frágeis subterfúgios. No fundo, as saudades se avolumam; misturo emoções, retorno à adolescência, à Rua Amélia, à Bento de Loyola — ruas onde morava Mauro Mota —, às conversas ao anoitecer, ao riso generoso, à bondade ilimitada, à fina ironia, ao lirismo, ao romantismo, aos poemas profundos, a uma época que me pertence e que me ajuda a superpor os meus retalhos. Mais uma vez repito versos que ressoam, e ressoam com a força da presentificação. Então descubro que há um só tempo — o que vivo: “Vou em busca do ter-sido./Desapareço no espaço./ Fico de novo perdido./Procuro-me, e não me acho”.

Viver consiste na intensa procura e na certeza de nunca achar.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

No lusco-fusco

Fátima Quintas



O acordar traz sensações diversas. Há dias que a gente amanhece leve, a voar como um pássaro, planos sólidos, esperanças confiantes; as pálpebras se abrem diante de um céu azul, limpidez no horizonte, estado quase de levitação. Noutros, as emoções diferem: os olhos pesam, a natureza parece estática, o sopro das reminiscências soa mais alto. Somos contraditórios dentro de uma coerência cotidiana. Pois é, hoje despertei um tanto escura.

Há fachos de penumbra em mim neste instante. Não adianta enganar-me: a tropicalidade, com o excesso de raios luminosos, me turva. O sol clareia demais os sentimentos, tornando-os enodoados; a minha timidez opta por guardá-los em gavetas cerradas. Prefiro reservá-los nos nichos do inconsciente que devastá-los na ostentação dos holofotes. O mundo se mostra tão truculento que tenho receio do seu aparente fausto. As noites, essas me recebem sob o agasalho da recatada intimidade. Delicio-me com os fins de tarde, quando a luz perde a imponência maior. Pode parecer estranho; mas é no escuro que meus olhos fisgam o imperceptível.

Acordo imbuída do prazer estelar. E, no entanto, o quarto de dormir se deixa banhar pelos feixes do sol. A janela, devasso-a para respirar o oxigênio da renovação. Tenho sede de vida; vou vigiar o lusco-fusco com o intuito de entregar-me por inteiro à sabedoria dos despojados. Antes, todavia, há muito o que fazer: irei ao banco, pagarei contas, despacharei os papéis que se avolumam no bureau, aborrecer-me-ei com o gerenciamento do dia. Caminharei de um lado para o outro a resolver detalhes burocráticos: o corpo se cansará na rede imbricada das relações formais e, depois, o cansaço da labuta me impelirá ao claustro — ao quarto de estudo. Apagarei as luzes, acenderei uma vela, olharei atentamente para a chama, então rapidamente me recuperarei dos inúteis afazeres.

Os relógios se consumiram na inapetência de atos administrativos. Os olhos se gastaram espiando homens e mulheres devorados pela gangorra da burocracia. Estou a salvo. Tomo um banho. Purifico-me. O ritual do sossego se inicia: no silêncio da noite e na placidez da vela. A essa hora não ouço os ruídos das construções circunvizinhas, a campainha da porta, a velocidade dos carros, o burburinho de vozes em conversas desinteressantes, as discórdias do mundo... Escuto apenas a quietude da lua se escondendo ou despontando à meia-noite.

Não penso em nada. Quero esvaziar-me das nódoas de uma insípida manhã. Sinto-me completa na liturgia da vela; é tempo de apreciá-la. A chama se transforma de minuto a minuto, constante mutação, um vir-a-ser ao ritmo do filósofo Heráclito, tudo em plena circunvolunção, e agora, e depois do agora, e o mesmo agora, e o presente dilapidando o instante, e Clarice Lispector a se perguntar pelo “é”...

Fecho os olhos. Enxergo-me. A vela continua na cadência do fogo. Mergulho na ausência das coisas para depois absorvê-las com maior intensidade. Foi não foi, é necessário uma faxina interior, rasgar as emoções com a intenção de substituí-las. Qual o quê! Não serei capaz de anular minhas lembranças; por mais que me esforce, é vão todo o propósito. O inconsciente se encarrega de reter o que quero e o que não quero. Um jogo de subjetivações para o qual me doo com um certo gozo.

O tempo firma a madrugada. Durmo ao embalo de um vazio proposital, ainda que a cada dia cresçam as minhas ressonâncias. E não há como escapar da menor recordação: chego à conclusão de que o meu problema é tão somente esquecer... Impossível. A memória define minha identidade. O resumo do meu “eu” corresponde ao espaço da evocação. Assim, em um poço de oposições, vou edificando dias e noites.

Amanhã, acordarei mais clara e escreverei sob a ode das cores, até berrantes, quem sabe? Hoje estou escura. Ao modo de Drummond: “estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio”.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Letra viva

Fátima Quintas




Preciso da literatura como preciso do ar para respirar. A ficção me acalenta com sua intricada urdidura e sua aura imaginativa. A liberdade se reduz ao voo da criatividade. Pensar sem barreiras permite que a alma desabroche e corresponde à janela aberta de ponta a ponta, sem divisórias entre o espaço da natureza e o espaço que me habita. Sou um bloco uníssono quando me disponho a olhar para fora e para dentro de mim, através de um diálogo íntimo e, por que não?, egoísta. Ler as entrelinhas diz do maior mistério da letra viva. E a letra só tem caráter intrínseco transformada em substância latejante, imersa na identidade própria e na sutil significação. Não há como fugir do implícito, nele reverberam as possíveis "verdades" da escrita. Clarice Lispector antecipava: "Mas já que há de se escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas". A vida só tem sentido imaginada, e não vivida concretamente. A ilusão ganha vigor pulsante. O jogo do dia e da noite serve de lastro às utopias inscritas e escritas no espírito. Então o valor da palavra se desdobra para além de si, alcançando horizontes longínquos, às vezes esfumados na nossa inspiração. E o caminho se perde no infinito do devaneio.

Quando Virginia Woolf quebrou os tabus de uma escrita limitante, assumiu a autenticidade de si própria. Não se deixou debulhar em parâmetros impostos, mas dilacerou as amarras que porventura a sufocavam. Escreveu em pleno gozo de sua saudável loucura - delírio suicida. Entregou-se de corpo e alma a um sonho impossível. O sonho foi maior que ela, arrebatando-lhe a vida. Nem por isso seus textos anularam a largueza de uma prodigiosa transfiguração. Perenizou-se. O ato de existir reclama um processo de transcendência. Se a escrita carimba o selo da constância, deve-se à letra o poder de conquistar uma lembrança que não esmorece com o tempo, porém vence a cronologia para galgar a duração de um signo eterno. A letra consigna a força que detém.

Guimarães Rosa se enredou num vocabulário original, quis lidar com palavras comuns e incomuns, ressignificou o nome mediante a capacidade de gestar um pensamento tão regional quanto universal. Suas frases vêm carregadas de belos enigmas: "A gente só sabe bem aquilo que não entende". "Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez ache mais do eu que a minha verdade". "Meu duvidar é uma petição de mais certeza". "Mente pouco, quem a verdade toda diz". "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura". São as entrelinhas que dignificam a escrita. O explícito empobrece, banaliza o que deve se esconder, oferece-se sem cerimônias. Ocultar prenuncia a sabedoria daqueles que dominam o que dizem. Assim acontece com os poetas que metaforizam os versos e revelam apenas a metade das significâncias. Para que ir além? Basta caracterizar o não dito na simbologia do que se quer dizer. Então temos o verso incompleto e absolutamente completo.

Fernando Pessoa brinca com a nudez e com a reclusão das palavras: "A minha alma partiu-se como um vaso vazio./ Caiu pela escada excessivamente abaixo./ Caiu das mãos da criada descuidada./ Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso". A ficção é a verdade que conheço. Nem quero outra. Inventar me encoraja a viver, única forma que encontro para driblar as curvas acentuadas da estrada. Se me invento, revelo-me pelo avesso. E o avesso nunca mente, reflexo de um eu não lapidado, quase cru na essência, mais puro e menos danificado pela ventania ontológica. O que me salva e me condena são as entrelinhas, as hesitações diuturnas, a volúpia de criar novos cenários num picadeiro por mim construído. Há o riso, há o choro, há a expectativa, há a atenção... e a rede do circo não existe. Nem por isso o trapézio minimiza o perigo. As entrelinhas me acompanham no mistério e no mágico da letra. Ainda bem.