quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Realejos e cristais - Comentário sobre o livro




Contos curtos e intensos. Objetivos e subjetivos. Suaves e impactantes. A autora transita entre o real e o introspectivo, entre o palpável e o intangível, entre o simples e o abstrato. Dotada de uma sensibilidade à flor da pele, percorre os meandros do cotidiano, captando detalhes aparentemente imperceptíveis, assim como cenas por vezes violentas da rotina. Os mergulhos são profundos, foge das superficiais aparências para submergir nos recônditos da alma. Não teme mostrar-se a nu por entre personagens legítimos e fictícios. Um passeio sinuoso que convida o leitor a seguir veredas mágicas, simbólicas e penetrantes.

Nasceu no Recife, Pernambuco, Brasil. Desde cedo começou a inventar histórias que iam se construindo ao embalo de uma ficção assemelhada a contos de fada. Cresceu sob a égide da imaginação. Mas, pouco a pouco, firmou-se numa linguagem pessoalíssima, elaborando, primeiro, as sílabas; depois, os vocábulos; e a idéia se transformando em matéria-viva. Sem preconceitos ou vestígios de intolerância, assumiu a tendência intimista com vontade inabalável, ainda que o corpo frágil indicasse hesitação; vendo, ouvindo, tateando e, sobretudo, sentindo: uma mania desarvorada de sentir. Trapezista que se equilibra entre o papel e a navalha, entre os fios de aço e a rede esgarçada, entre o parágrafo para concluir e a alucinação do ponto final. E a vida, a latejar nas veias...

Escreveu vários livros: crônicas, contos, romances, ensaios. Expectadora perdida em uma multidão anônima que se confunde com rostos múltiplos. Angustiada e introspectiva, lendo Virgínia Woolf, Katherine Mansfield; Albert Camus, Marguerite Yourcenar. E a indecifrável Clarice Lispector.

Vulcânica, inquieta, revolta.

E em paz.

Meu nome: Fátima Quintas


Os realejos, movidos a manivela, relíquias de uma casa sobrevivente, entoavam concertos ao som romântico e roufenho, enquanto os cristais quebravam-se à toa. As janelas fechadas recusavam a intromissão da luz; sem vento algum os lustres bailoçavam, as velas dos castiçais apagavam-se, as cortinas finas e delicadas voavam... Sem mãos alheias, os retratos mudavam de lugar, a louça antiga, guardada numa petisqueira do século XIX, aparecia arranhada, os sofás expulsavam as cobertas em crochê, o marquesão perdia o brilho do verniz... O riso tranquilo de Maria Gasparina ressoava, da porta de entrada à porta de fundo... até que o interruptor provocava um curto circuito.

A estética dos sentimentos




Fátima Quintas




O mundo é feito de emoções: surpresa, medo, riso, choro... Há dias tranquilos; outros, tumultuados. As previsões são tão fugidias, que escapam do nosso controle. Dependem das circunstâncias. E não somos capazes de traçar com segurança metas antecipadas. No redemoinho das sensações, trago a idéia de um cromatismo interior, sentimento que aflora em tom e semitom difuso ou clarividente. Procuro, talvez em vão, imaginar cores para as vivências. Atribuo uma estética ao subjetivo. Pois é, o sentir se alia à arte e todos os atos humanos dependem da maneira como cada um se depara com os acontecimentos. Carrego uma sensibilidade à flor da pele, vejo-me um acúmulo de intuições, perguntas sem respostas, devaneios, alheamento. Repito Fernando Pessoa: “Quando olho para mim não me percebo./ Tenho tanto a mania de sentir/ Que me extravio ás vezes ao sair/ Das próprias sensações que eu recebo”.

Os versos são belos e confirmam o exercício da estética. Tem sido assim com os grandes poetas, aqueles que dão à escrita a força das imagens: palavras que embalam fonemas num ritmo melodioso, a transcender a materialidade para atingir a abstração na sua mais fina agudeza. Quando leio Fernando Pessoa sou tomada por tal vibração que entendo que a vida reclama a arte em todos os momentos. Cada minuto deve ser vivido como se fosse uma obra de arte. Tempo igual à arte, eis a síntese da existência. Arte na palavra, arte na pintura, arte na escultura ou na menor expressão humana. A criação simboliza o ponto de partida. Afinal, “viver não é necessário; o que é necessário é criar”.

Tudo isso vem à tona porque ando atordoada com o ritmo do cotidiano. As pessoas transitam apressadamente e não sei para onde vão. Caminham céleres na direção do quê? Outro dia, mais especificamente horas antes do jogo entre Brasil e Coréia do Norte, ouvi impropérios de um motorista porque o engarrafamento se alongava na Avenida Dezessete de Agosto e os veículos começavam a driblar a fila, transformando a calçada num atalho em fuga. Neguei-me a adotar tamanha insanidade. Os desaforos foram disparados como num tiroteio às cegas. Mantive a calma, o que irritou o agressor, a ponto de descer do carro e encenar gestos descontrolados de violência física.

Em casa, refleti sobre o fato. Os tempos contemporâneos se revelam ruidosos, violentos, pragmáticos. Optei por refugiar-me nos versos de Fernando Pessoa. Logo relaxei as tensões anteriores. Compreendi que o bosquejo dos sentimentos reivindica um mínimo de meditação. A ascese não pode acontecer dissociada de constantes imersões. Invejei a rotina dos mosteiros, as clausuras isoladas, o passeio no átrio. Circulo de um lado para o outro, do frenesi à calmaria; então deparo-me com a lhaneza do dizer: “Amar é a eterna inocência,/ E a única inocência não pensar...”

Os sentimentos se completam na estética. Na forma. Na cor. Na gradação dos contrates. De Michelangelo a Picasso, os propósitos são semelhantes, cruzam-se e se tocam em linhas convergentes: a busca do belo. Os descompassos dos dias atuais se distanciam do culto à virtuose e proclamam a tecnologia como o cimo de todas as coisas. A humanidade mudou, e eu me tornei uma estranha observadora, alguém à deriva, escolhendo cores para retratar afetos e desafetos. Uma abstração que me agrada.

Como definir a cor do silêncio, da alegria, da lágrima? O silêncio será branco, límpido, prenhe de pureza? A alegria, amarela, expressiva? A lágrima, indefinida, quase oculta, a evocar o cinzento? Ou as tonalidades são ilusões de um coração nostálgico? No meu quarto de estudo apego-me ao que o poeta escreveu: “A minha alma partiu-se como um vaso vazio./Caiu pela escada excessivamente abaixo./ Caiu das mãos da criada descuidada./ Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.”

Entre a poesia e o futebol, ouço o barulho das vozes aplaudindo o primeiro gol do Brasil. Festejo. Preciso de ânimo para continuar a pintar a aquarela que nunca comecei.

O Recife: retalhos da história

Fátima Quintas





Tenho em mãos gravuras da cidade em que nasci. E a lembrança fragmenta os fatos. Um ali, outro acolá. Pedaços que permanecem vivos na memória histórica. Importa, todavia, recordar o que não vi.

O Recife surgiu de um pequeno povoado de pescadores no areial defronte dos arrecifes, gente humilde que vivia em torno das águas dos rios e do mar. Pouco a pouco a região começou a receber as embarcações que vinham da Europa, trazendo mercadorias para os habitantes de Olinda. Entrementes, acelerava-se o embarque de açúcar, pau-brasil e outros produtos que daqui migraram. O movimento das embarcações crescia, a reclamar a construção de armazéns, à época, chamados de “passos”. Casas de residências de trabalhadores surgiam; comerciantes também se instalavam em sobrados, utilizados tanto para moradia, os andares superiores, como para o comércio, os pavimentos térreos. O Largo do Corpo Santo adquiria uma feição bela. E eu o vejo nas gravuras à minha frente.

Assim o bairro se desenvolvia; a primeira igreja levantada foi a capela de “Santo Telmo”, ou “Santelmo”, origem da Matriz do Corpo Santo. Os holandeses, ao chegar, instalaram-se em um prédio defronte dessa igreja e aí fincaram a sede do governo. Trataram logo de aterrar os alagados para expandir seus domínios. A ”Aldeia do Recife” ganhava novos ares. Ainda que a sua evolução tenha sido rápida, somente em 1709 o Recife foi elevado à categoria de vila e, mais de cem anos depois, 1823, alçou a hegemonia de cidade. Em 1827, adquiriu o título de capital da província de Pernambuco, retirando de Olinda tal regalia.

A história do Recife não pode ser esquecida, mesmo que a sua linhagem arquitetônica tenha sofrido perversas demolições: arcos, monumentos, igrejas, palácios (como o das Duas Torres ou o da Boa Vista). Vale registrar que, em 1644, Maurício de Nassau inaugurou uma ponte de madeira, ligando o bairro do Recife ao de Santo Antônio. No ano de 1865 a ponte foi substituída por uma de ferro, feita na Inglaterra e semelhante à da Boa Vista dos dias atuais. Saliente-se que, em 1917, sofreu uma grande reforma, mudando a estrutura para concreto e adotando o nome de Ponte Maurício de Nassau. Há uma história de saudade nessa ponte, aliás, de intensa saudade: dois arcos se exibiam, um em cada extremidade — o de Santo Antônio, construído em 1743 e demolido em 1917, arquitetura simples e bem menor do que o Arco da Conceição, que ficava na outra ponta. O primeiro arco tinha um nicho no alto, o qual, em 1746, recebeu uma imagem de Santo Antônio, esculpida em pedra pelo entalhador João Pereira. Por esse motivo, no dia 13 de junho, dia do santo patrono, festas religiosas e profanas ali se realizavam. A propósito: o Arco da Conceição, de acordo com as gravuras/fotografias, transbordava beleza e foi impiedosamente demolido em 1913. Igualmente ali aconteciam, no dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, inúmeras festas com participação popular. O comércio da redondeza fechava; as devoções revelavam o respeito da população à arte e ao místico; a fé recrudescia nas promessas encomendadas.

E a Cruz do Patrão? Coluna dórica, erigida em fins do século XVII, com seis metros de altura, encimada por uma cruz latina. Marco para os navios que entravam no Porto. Nas suas imediações, escravos eram enterrados, descuidadamente, ao léu. Sabe-se que muitos escravos não receberam acolhimento em modestas “sepulturas”, jogados na praia, corpos abandonados, o que causou grande espanto em cronistas, como relata a inglesa Maria Graham que presenciou urubus pinicando braços inertes. Por algum tempo, disseminou-se uma lenda: o local da Cruz do Patrão deveria ser evitado, sobretudo à noite, de onde sopravam lancinantes gemidos ou miragens de almas penadas. A Cruz do Patrão ainda existe; localiza-se ao sul do Forte do Brum.

A Rua 1º de Março tevê o nome de Rua do Crespo porque nela residiu o português Manuel de Sousa Crespo, que chegou ao Recife em 1648. O nome foi mudado para 1º de março, em 1879, com o objetivo de registrar o dia do fim da Guerra do Paraguai. Circulavam bondes de tração animal sobre trilhos, somente substituídos em 1914. Bom lembrar que a Livraria Ramiro Costa, uma das lojas mais tradicionais do Recife no século passado, inaugurou-se em 1888, exatamente nessa rua.
Muitos retalhos não sobreviveram. O Recife chora as perdas.

Mauro Mota, uma homenagem

Fátima Quintas





Novembro é um mês que aumenta a minha saudade, ao lembrar da morte do poeta Mauro Mota — 22-11-1984 —, um dos maiores de Pernambuco. Na ciranda da vida moderna, a tendência, aliás, lamentável tendência, é esquecer escritores e antepassados que deixaram herança literária, sentimental, afetiva, parte da nossa biografia. Se o tempo gira numa célere velocidade, dias se encurtam, meses se evaporam num piscar de olhos, anos já não dispõem do vagar de outrora... É preciso reavivar a memória e cultuar os entes queridos. Mauro Mota pertence ao mundo. Transcende épocas. Ultrapassa a pobre cronologia dos calendários vencidos. Suas palavras, suas canções de amor e de morte, sua melodia escandida em belas mensagens se expandem no ar, qual borboletas que se metamorfoseiam, porém nunca fenecem na linguagem da magia. Os poemas mauromoteanos tocam a alma, afagam a pele, serenam o espírito e se eternizam em ecos cadenciados: “Vem vindo o vento violento/ praticar infanticídios./Mata as rosas em botão,/ rosas cobrem outras rosas/deixadas mortas no chão”.

Pensar a poesia de Mauro é debulhar a emoção latejante, o vento que assobia em tempestade ou em brisa candente, as rosas que baqueiam, os suspiros que emudecem ou os gritos que sufocam a garganta, a pedir para bradar sentimentos recolhidos. Pensar a poesia de Mauro é receber o aroma da nostalgia ou a ondulação do verbo ser em vasta plenitude. Pensar a poesia de Mauro é vê-lo de novo perto de mim, brincadeiras constantes, riso animado, ironia sutil, às vezes nem tão sutil assim, ainda que nunca ofensiva, mas versátil, espontânea, inesperada.

Sei que sou uma privilegiada porque convivi com uma plêiade de intelectuais que me ofertaram um legado intransmissível. Mauro Mota pertenceu a esse grupo de elite pensante, de sensibilidade à flor da pele, de percepção especial, a traduzirem-se em palavras expressivas, plenas de significação. “A chuva cai sobre o Recife devagar,/ banha o Recife,/ apaga a lua,/ lava a noite, molha o rio,/ e a madrugada neste bar./ [...] A chuva cai, desce das torres das igrejas do Recife,/ corre nas ruas, e nestas ruas, ainda há pouco tão vazias,/ agora passam, de capote, transeuntes/ do tempo longe, esses fantasmas de mãos frias”.

Do sobrado da Rua Amélia avistava Mauro chegando ou saindo, eu, na janela, tímida de juventude. Porte fidalgo, o dele, semblante tranquilo e aquele jeito todo seu de apreender o mundo. À mesa do jantar, o despojamento e a conversa bem afiada. Naquele sobrado o meu universo se enriqueceu com gestos e louvores de amizade. Ao fim da noite, a música clássica servia de pano de fundo ao sono que se anunciava. Longas conversas prolongavam-se madrugada adentro, o silêncio da noite, Mauro lendo poesia ou prosa. Recordo-me de um sábado em que recitou de cor Manuel Bandeira e depois começou a ler “Infância” de Graciliano Ramos. Lia, relia, comentava, mergulhava no texto.

Vez por outra, Marcos Vinícios Vilaça, acompanhado de Maria do Carmo, entrava de supetão, e o bate-papo se animava. A sensação se traduzia em horas que ali se estendiam para além dos minutos cravados no relógio. E a sala se ungia de literatura marcante. Havia mais que sabedoria espalhada no ar; era o tempo da liturgia estética. As vozes se misturavam, mas a elegia de Mauro se fazia ouvir por todos os lados. Um dia me perguntou: “O poeta no momento de criar encontra-se feliz ou triste?”. Olhamo-nos silenciosamente.

A recordação ilumina o passado com fachos vibrantes. As imagens agora nítidas perdem qualquer nebulosidade. Novembro não é mais saudade. É lembrança. Ressurreição. Singeleza evocativa. O poeta está vivo, vivíssimo, a repetir em voz branda: “Debruço-me de fora/onde havia janela./Nuvem ou casa extinta?/ Lá estou como eu era”.