Fátima Quintas
Ah! Se as pedras pudessem escrever versos, que diriam elas? Que a natureza as rodeia e nem sequer as percebe ou que seu caráter granítico as impede de ser vistas com ternura. E, no entanto, Adélia Prado diz que quando olha uma pedra e a vê pedra não está na hora de escrever. As pedras significam algo estático, parado, um obstáculo. Os versos de Drummond são famosos: "No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra". Pedra pode ser topada; pedra pode ser empecilho; pedra pode ser símbolo daquilo que não conseguimos fazer. E a pedra torna-se um quartzo não lapidado, muralha que se agiganta na estrada, desejo interrompido porque há uma pedra no caminho.
Falo tudo isso porque nos jardins — mais precisamente no fundo do quintal — da casa da Rua Neto de Mendonça, onde morei por toda uma vida de infância e adolescência, havia uma pedra, relativamente grande, portanto, impossível de ser removida. Nela sentava-me para descansar, espiava-a no seu jeito inflexível, e não sei a razão de tê-la transformado em substância prazerosa que me concedia descanso e me estimulava a refletir sobre as tantas pedras que a rotina vai produzindo no curso da existência. Àquela pedra era diferente; trazia a placidez de quem nada fala, mas sabe ouvir. Um cantinho só meu, a recolher as confissões que ali depositei. Quantas vezes corri para esconder-me na pedra que ninguém apreciava! Somente eu a enxergava. E era arredondada, com a largueza suficiente para defini-la majestática, suntuosa na forma e no tamanho.
No inverno, a superfície lodosa clamava por limpeza; limpava-a; a expectativa era de tê-la sempre higienizada e, sobretudo, no mesmo lugar. Nunca me faltou a pedra do quintal de antigamente. A certeza de sabê-la ao término dos canteiros já me deixava feliz. Tudo mudava: as rosas, as begônias, as hortênsias, as papoulas; as heras também. Ora cresciam; ora se permitiam mirrar por falta d’água ou por desleixo de quem as cuidava; ora percebia-se completarem o seu ciclo de vida. A natureza se metamorfoseava à sombra da lua ou à luz do sol, às vezes escandalosamente florida, frondosa, pétalas abertas, troncos nodosos, verticais. Cada pedaço de terra bradava suas sementes. A pedra, não; permanecia igual, exatamente igual desde o primeiro encontro até o desmonte do terreno. Estranhamente a pedra é a lembrança mais estável desse fundo de quintal tão versátil.
E a concepção de pedra em mim adquiriu um novo significado: misto de abstração e materialidade. Pedra que pode ser Pedro ou Petra. Que pode ser algo consistente, rígido, sólido, que não se desmancha no ar, perdoe-me Karl Mark. Encontro no Evangelista Mateus inúmeras recorrências ao termo — “Disse-lhes então Jesus: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular.” Transcrevo outro versículo, também de Mateus — “Jesus respondeu-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela”.
Existem tantas formas de metaforizar a pedra! Na minha infância ela se dogmatizou em gruta silenciosa sobre a qual construí ingênuos altares. Na juventude, a ela acorri como refúgio de momentos de inquietação. Nas andanças por Casa Forte, cada tropeço a traz à tona em imagens as mais variadas. No Evangelho, a sua solidez eleva-a à imaterialidade da transcendência. Pedra angular. Pedra edificante. Pedra sobre pedra. Não tardo a descobrir, e nunca é tarde demais para descobrir, a fragilidade dos conceitos. A toda hora me renovo na busca do que não sei ou do que não quero saber. Melhor imaginar as inúmeras circunstâncias da vida e acatar a vigilância de Adélia Prado; afinal uma pedra bem pode ser uma rosa, basta apenas fazer uso do exercício da transfiguração.
Aos trinta anos, na precoce maturidade, depois de muito tempo sem espiar a pedra do jardim da Rua Neto de Mendonça, voltei ao seu lugar; lá estava, imponente, intocada, então coberta pelos imbés, plantados posteriormente. Já não era pedra; eram folhas trançadas, convidando-me a escrever.
Pedra, Pedro, Petra, o que há num nome?