sábado, 30 de março de 2013

A casa das horas lentas

Fátima Quintas



Quando criança, na doce ingenuidade dos primeiros anos, a casa em que morava me parecia eterna, à Manuel Bandeira. Móveis escuros de sucupira, mesa retangular, jogo de chá sobre o bufê, sofá acompanhando os desenhos da madeira, a cortina esvoaçante traçavam a harmonia impecável — tudo posto no lugar. O lustre em opaca delicadeza aliava-se à sintonia do futuro. E o dia se alongava numa noite comprida e infinita.

Horas lentas me falavam do amanhã. Nada de atropelos, somente pausas para caminhar em chão seguro. Naquela casa só bailavam fantasmas queridos. Do menor objeto ao maior, o círculo se entreabria no espiral da esperança. A mãe transitava dos quartos à cozinha; eu perscrutava a elegância do seu porte, a leveza das mãos, o prazer de sentir-se mãe de filhos amados. Ao final da Rua Neto de Mendonça, a casa descansava, nº 242. Número cabalístico.

Nunca medi sua extensão, nela cabia o mundo que imaginava. Para além do portão, o universo todo se diluía. Quem disse que eu precisava mais do que aquele enorme espaço de existência? Muro cheio de heras, a ostentar a beleza do verde. E as hortênsias? E as rosas? E as nuvens? Um paraíso que me acolhia sem avareza nem mesquinhez. Se faltava alguma coisa, a mãe trazia não sei de onde.

O terreno se espichava num imenso quintal: havia mangueiras, frutas-pães, jambeiros, e uma bananeira misteriosa, de folhas compridas e largas, cachos frondosos e tronco macio que recortavam o limite da moradia. O muro servia de indicativo de outro espaço que se avizinhava. Os terrenos baldios, vigiava-os, silenciosos, sem vozes, mas com ecos. Acreditava que toda aquela terra era o que sobrava do cosmos. Por isso não me interessava em pisá-la. Preferia ver o que os olhos me regalavam. As estradas se confundiam com os meus anseios.

E para dinamizar a cena, uma bruxa aparecia antes do crepúsculo, meio da tarde, a quietude imperando e... a miragem me açulando. Então julgava que anoitecia. Não. Não anoitecia. Mas a mente infantil desenhava o ciclo do tempo. Voltava para casa, porque o medo de mim se apossava, e o terraço fechado me recebia como útero protetor. Hora do banho, vestido próprio para a tarde, o lanche.

Cocadas ou suspiros ou pão de ló. Tudo novinho, saído do fogão. Os irmãos desejavam comer primeiro; tardava eu a chegar, era mandriona. O longo banho e a lerdeza do vestir-me atrasavam a busca do fim da tarde. A mãe esperava para que todos os filhos estivessem juntos, o cerimonial começava. A regulação do tempo se media pelos acordes do crepúsculo, assim, calculava que a vida se fazia entre a clarividência e as sombras. Tal dualidade cromática me ofertava o movimento do tempo: sol, lua; luz, escuro. Pouco importava o mês ou o dia ou a noite, as sensações tão somente variavam em torno de um arco-íris bicolor.

A casa era a vida; a vida era a casa. Perfeita simbiose que gritava por felicidade. Conhecia todos os cantos e recantos dos aposentos, sabia onde esconder-me ou onde me apresentar de maneira explícita, amava a variação dos contrastes.

Tudo isso foi ontem. A casa já não existe. O tempo me amedronta. Sinto a consciência do existir. Ah!, como aprecio esse passado etéreo! Ali não havia brechas para duras racionalidades.


domingo, 17 de março de 2013

A Liturgia da Rosa

Fátima Quintas

 
Amarra o cabelo com displicência. As madeixas, meio soltas, meio presas, dão-lhe um ar de desprendimento, embora a obstinação de ir adiante nunca lhe arrefeça o destino, mesmo à sombra de falsas aparências. Ela, ruiva e sardenta, alta e magra, nariz arrebitado, sabe que o mundo não gira em torno de si. E, no entanto, os paradoxos de uma mulher, a perder a juventude e a acatar a madureza, consagra-lhe a virtude da sensatez. Olha ao redor, viu uma bela rosa vermelha germinando na jardineira da varanda. A maciez das pétalas, não se atreve a manusear; o mirar lhe parece suficiente, mirar apenas... e aproximar-se... e inalar o orvalho desprendido da cor de sangue, sangue. A curvatura da flor denuncia o tempo que perdura ela, viva, vívida, vivente; a corola dobrada se submete às horas e aos imprevistos futuros. Amanhã, talvez antes do alvorecer, em pleno desabrochar, já não se exiba em igual fulguração.

Quão delicadas as pétalas formadas à custa da transformação dos estames! O caule fino, com alguns espinhos, representa a pálida defesa de quem se oferece sem limites, inteira, a rosa. As folhas verdes, a resguardar a divindade, evocam uma espécie de anteparo para deixar que o carmim exploda no escarlate da sedução. Aveludada. Tecida à mão. Textura única — paroxismo do que é sagrado. O vento não ousa vergá-la, mas venta, e venta muito, o assobio se ouve como uma canção entoada em solfejos intermitentes. Gêmeos e irregulares. Na quietude da paisagem, os traços esboçam a feminilidade dos toques sensuais, vagarosos, lentos, sussurrantes... Entre sopros inaudíveis, há o eco de um dizer impossível. Existem palavras para aquele pouso de eternidade? Camila relaxa.

As madeixas, arregaçadas em desalinho, despencam sobre os ombros —pequenos feixes desfilam na fina pele de uma boca pronta para ser beijada. Os lábios molham-se mutuamente, enquanto o roçar dos cabelos instiga-lhe o anseio de possuir a rosa ou de ser ela própria uma rosa. Não se conforma em querer tanto a prenda que não lhe regala; ainda assim, o vermelho grita na sua carne fremente e pouco saciada. Ela, uma mulher, ruiva e descalça, dona de um corpo magro e de uma anatomia extenuada de sensibilidade. Inspira o olor da rosa e então faz-se rosa também, a criatura.

O que é ser rosa? Teria capacidade para tanto? Entreolham-se a rosa e Camila. Os lábios miúdos, ungidos pelo movimento do toque mútuo, cadência de leveza e de passividade; uma mulher indefinida na fronteira do sentir e do amar. Os lábios miúdos recolhem-se diante da negação de assumir-se em flor — não pode ser a rosa; faltam-lhe antecedentes. O excesso do olhar transforma a calidez do momento. Tem medo. Nem faz frio; tampouco calor. Uma rosa a debulhar-se; É isso. Isso.

Para quem? A mulher se afere menor e incapaz de receber o tamanho do cálice das rosas, frágil na timidez de explodir, de explodir imune às levianas exterioridades. O que abona o desenho de uma superfície intangível corresponde exatamente à exuberância do etéreo. Camila encharca-se de arrepios de êxtase — jamais quis conferir a data de nascimento, de modo a evitar a subtração do tempo, irreversível. A vida se eterniza a cada fôlego. Só. O instante da rosa evade-se por entre um perscrutar repleto de insinuações.

A beleza se exaure quando os ponteiros do relógio se encontram? Ou o tempo se congela no estatismo das hastes em contato físico? Entre a beleza e a efemeridade, por acaso não circulam inexplicáveis pactos de amor? A rosa veio ao mundo no seu lento nascer, longe de traumas ou inúteis arrebatamentos. Nem o vento que compunge o corpo da mulher, a escorregar o tecido fino do vestido sobre a pele indócil, a percorrer os seios como um desleal intruso, nem o vento se arrisca a afastar as suas pétalas. A mulher entende a vulnerabilidade de estar à frente do mundo: e em posição de artilharia. Fecha os olhos para abri-los depois com mais vigor, necessita preparar a solenidade da rosa, o ver, o enxergar, o mirar... as pálpebras se mexem acompanhando a medida da captura sensorial.

Eu quero ver... eu quero ver... Camila murmura entre os lábios sem pintura. Ela se argui do direito de sibilar a renúncia de apalpar a rosa. Tocar o que se ama pode vir a ser uma maneira de macular o “perfeito”. A rosa sozinha se basta, lânguida, morosa, independente. Basta-se tanto que durante o espaço de uma manhã, à Malherbe, suas pétalas se encolhem, o talo tomba, a semente se transfigura em pó.

Ela, a mulher, continua na varanda, ruiva, cabelos ao vento, lábios umedecidos, pés descalços, à espera de um outro renascimento... Ignora o sentido do instante que se inicia.

sábado, 9 de março de 2013

O não-lugar de Mariana

Fátima Quintas




Sobre a mesa oval da sala de jantar, o jarro de louça repousa. Flores novas, retiradas do próprio canteiro da casa, lindas, exuberantes. Mariana se orgulha dos cuidados que ela, uma mulher simples, devotada aos filhos e à lide doméstica, tributa às rosas do jardim, um pequeno retângulo de terra que se localiza na frente do terraço da morada. Aquele canto é seu, seu. Nunca ouvira elogios de parentes, tampouco dos filhos ou do marido, suas sementes despontam alheias à dinâmica de um lar repleto de afazeres e individualismos. Quem percebe a mulher de dentro da casa? 

Desde que as refeições sejam servidas à hora certa; desde que o café se mantenha no ponto, forte, amargo; desde que a roupa lavada e engomada se renove no guarda-roupa; desde que a cerveja se conserve bem gelada; desde que a cozinha se apresente limpa, asseada; desde que o almoço exiba pratos bem arrumados, desde que... tudo corre bem naquela família de cinco pessoas: marido, mulher, três filhos. E nada há a comentar. 

O dia atarefado, Mariana não se preza, de si pouco se afaga. Acorda ao som do despertador, côa o café, ferve o leite, prepara os sanduíches, frita o queijo de coalho... Despeja a louça na pia e ruma à feira na ânsia de encontrar carne fresca, frutas maduras, temperos preparados artesanalmente, hortaliças verdes e respingadas pelo orvalho da madrugada. Corpo frágil, o de Mariana, afeito a delicadezas; a energia de que dispõe não lhe é suficiente para a jornada em sequência. Não reclama; sequer ousa queixar-se.  E o peixe? Ah, que trabalheira! Quando o vendedor falha — o velho Seu Ernesto, com jeito sisudo, sério —, opta por outras alternativas que nem a todos agradam. Erra sempre, ainda que não poupe diligências de modo a evitar avulsas reclamações. A redobrada disciplina impõe-lhe uma tirânica atenção. Ela, tão diminuta, tímida, invisível; escondida em si, qual o sótão, o olvidado sótão, onde se abarrota a tralha do desnecessário. 

E os dias se processam iguais, iguais, iguais... Nada muda no corredor meditativo, os passos se alongam ou diminuem, os retratos na parede a olham e falam-lhe, e a ela cobram a dignidade dos antigos. Ao clamor de tantas vigilâncias, não tem o direito de decepcionar os ancestrais, mulheres dedicadas aos seus maridos, entregues à concha do lar, somente visíveis nos retratos da parede, então expressões tristes, mas gratificadas pelo dever cumprido. Belos rostos, perfis apolíneos, cabelos penteados em impecáveis coques... E o camafeu de pedra ônix, a emoldurar colos pouco desnudos!.. Entre um olhar e outro, os sentimentos se agudizam à sombra da lembrança de um passado próximo e virtuoso.

O peso sobre os ombros não a poupa de um destino pré-traçado. Mariana se esgueira por sobre uma herança que lhe exige o máximo de submissão. E ela? Quem é ela, senão uma mulher que se sente em vida apenas quando amanha a terra dos canteiros de rosa? À tarde, na hora perigosa do silêncio, ao vazio de uma casa sem som, dedica-se ao cultivo das raízes em crescimento, embriões viventes. Ali se confessa; ali conscientiza-se da sua nadificação; ali despoja-se dos pudores reprimidos. Ali toca no eu fugitivo, temeroso, em permanente trânsito. Mariana, um nome tão soado nos desvãos da casa — onde está a gravata, Mariana? Por que a toalha de banho ainda se encontra molhada, Mariana? A comida, hoje, levou sal a mais, Mariana —, tão soado, tão soado, e tão pouco desejado. 

A cozinha, a expor a assepsia da cerâmica vitrificada, a roupa passada a ferro, as camas cobertas com colchas de gorgorão selam a paz da solidão oca... Ao lado do fazer exaustivo, a folhagem cresce, as pétalas desabrocham, a fecundidade da rosa reproduz sentimentos em troca. A mulher se presenteia inteira, em completude, ao instante da rosa. E por esse instante, um tempo miúdo, soma de minutos fugazes, por esse instante, sempre por esse instante, aguarda a tarde que lhe traz a dádiva de ser, de ser-sendo. Mariana, em pleno colóquio de amor. Sem exasperações, na dolência de talos que se quebram ou se curvam ao embalo da efêmera existência. 

Um mínimo de tempo lhe rende o espaço da eternidade. E a eternidade se reduz a rosas vermelhas, Mariana não duvida dessa graça, do sentir que se confunde com um querer abafado — ninguém conhece e nem pode conhecer o seu único esconderijo. A transcendência se faz ao sabor da tarde, quando todos se afastam do lugar da casa, o lugar que é o dela, embora nunca a tenham enxergado no seu devido tamanho. O lugar se transfere de dentro para fora, para o não-lugar, pedaço de terra pouco habitado, a céu aberto, ignorado, superfície sem uso. 

O seu mundo resulta numa porta estreita. No entanto é lá que Mariana se assume mulher, premida pelos altos muros de um difuso existir. A tarde não se perpetua; despede-se na passagem da noite — a vigília recomeça. 

A outra mulher, que não é Mariana, entra em casa.        


sábado, 2 de março de 2013

Os Amantes


Fátima Quintas


Ela, no quarto, dorme. Ele, de pé, olha-a. Dois corpos separados pelo elo do amor. As pernas torneadas, o corpo relaxado, a pele aveludada dão a sensação de uma estátua esculpida por mãos de artista. O belo ali está: os seios rígidos, a cintura em curva, o colo largo, a exibir um fino e precioso trancelim de ouro; as mãos com dedos longilíneos, unhas em esmalte incolor, e o cheiro calmante de lavanda inglesa, exalando fragrâncias seráficas. Ela, uma mulher, com requintes de ser mulher. Ele, um homem, abandonado no seu olhar intenso. Penetrante.

Não se mexe, os músculos estão retesos, a voz tenta balbuciar algumas palavras, mas não diz nada. Não é tempo de falar. Nem teria o que dizer, ali o silêncio prevalece em respeito ao muito que deveria pronunciar. Mira apenas. Percebe a beleza do corpo, do outro. Ela possui a tez alva, os cabelos de um cacheado largo, louros, sedosos. Os olhos grandes, azuis, com sobrancelhas grossas, bem delineadas. A boca, um pouco entreaberta, sensualmente entreaberta, permanece imóvel, a deixar correr um fio de respiração, o que a torna ainda mais provocante. A camisola bege, de uma transparência proposital, serve de moldura a um quadro com desvelos impressionistas. Tudo é real e, no entanto, há algo esfumaçado na figura da mulher.

O homem relaxa os músculos, as pernas se afastam da posição ereta, há um momento de lassidão. As costas dobram-se, ele consegue mexer-se, chega a curvar-se para tocá-la, recua, desiste do ato imprudente. E não se ouve o menor ruído no quarto mudo. A mesa de cabeceira ao seu lado, tão próxima e distante. Não se comove com o seu olhar, jacarandá maciço, herança da avó, dela, a mulher deitada na placidez do sono. Ele a quer. Sempre a quis, nunca declinou desse desejo tão fiel à sua massa corpórea. O peito arfando uma vontade incontrolável. À medida do impossível traça o contorno da imobilidade.

Sobre a mesa de cabeceira, um livro marcado, nem chegara ao meio da leitura, páginas e páginas por ler, o livro repousa tranquilo à espera de quem o toque. Não lê o título o homem em pé. Prefere adivinhar o gosto da mulher, a mulher que ele ama, deitada, em paz. A dormir. A respiração comedida. Expirando, inspirando, um vaivém que o perturba na sua intensa regularidade. Freia o próprio corpo, alto, magro, esguio. Um atleta na sua nudez de Apolo. Ou de Adônis. Os cabelos pretos recebem as mãos do homem em um gesto de afago ou de impaciência. Penteia-os para trás, evitando que a mecha cubra-lhe a testa ou o olho esquerdo. É tempo de mirar e nada desvirtuará o propósito.

A mulher dorme. E pouco sabe da consciência do sono. Ela se entrega à letargia de um possível cansaço. Um pingo de suor escorre-lhe do pescoço, desce lentamente até atingir o ventre ofegante. E quase em evaporação, o pingo se acomoda na pequena reentrância da cintura. Exibe-se involuntariamente a mulher que o homem vê.  Não há resistência no corpo exposto, um corpo que há pouco foi tocado, amado, extenuado.

Dois corpos. Os amantes.

Ela, a mulher, dorme. Ele, o homem, olha-a.