quinta-feira, 16 de outubro de 2014

CARTA ABERTA

Escrevo em voz baixa, como se sussurrasse minhas angústias culturais. O momento é de dúvidas e incertezas. Preciso, todavia, falar. Nasci no Recife, nutro pela cidade um amor maternal, vejo as águas do Capibaribe e Beberibe embelezando a paisagem, pontes me fascinam, o ciciar das cigarras me acalanta, o seu jeito tímido e recatado de se mostrar me deslumbra... Mas não posso esquecer o esplêndido patrimônio: o barroco das igrejas, os heráldicos monumentos, a altivez dos casarões. E o abandono cruel em que vivem me aniquila. Então repito tal qual Unamuno: “Recife me duele”. Como entender o desprezo pela nossa arquitetura vernacular?
O que seria da França distante da cultura material? Como amar a Inglaterra sem a dignidade de sua aparência? Como venerar Roma ao largo da riqueza do Renascimento? Se a Europa se ergue sobre o mastro de uma história cultuada, por que ignoramos a nossa biografia em prol de uma modernidade imperativa. Não se pode entender o presente sem retornar ao passado. Há de se construir um equilíbrio que revigore o sentimento de pertença. O homem isolado, ausente das origens, equivale a um expatriado. Não adianta ludibriar as emoções, elas voltam à tona e exigem o mínimo de respeito ao que se chama tradição. Chesterton já dizia que “tradição não quer dizer que os vivos estejam mortos, mas que os mortos estão vivos”.
Pernambuco tem uma história a contar: Revoluções Libertárias, 1817, 1824, 1848, irredentismo a prevalecer, espírito de luta a acirrá-lo na vereda da esperança. Existe uma narrativa a ser zelada, o povo precisa reverenciar o que não conhece. Não me conformo que o poder público ignore as ruínas do patrimônio da cidade. Em nome de quê? Há um lapso que fere a alma, sangrando-a. E a cidade vai decaindo como pássaro ferido em pleno voo de liberdade. “Recife me duele”.
Berço da Civilização do Açúcar, Pernambuco, a notável capitania do século XVI, liderada por Duarte Coelho, atingiu o clímax nos seus primórdios. A arquitetura dos engenhos com suas casas-grandes, capela e moita exerceu função preponderante. Não pretendo delinear uma análise sociológica. O espaço seria pequeno para reunir exegeses. Hoje, peço ao leitor paciência; dedico-me ao patrimônio vernacular. Os grandes Casarões da cidade estão se despedindo em um melancólico adeus. Antes de fenecer, gritam, bradam, pedem socorro... Do outro lado, mora um silêncio que não os escuta. Como entender a situação precária da Academia Pernambucana de Letras, instalada em prédio tombado pelo IPHAN, patrimônio histórico nacional — cuja planta original tem assinatura de engenheiro francês —, estilo neoclássico, provavelmente erguido na primeira metade do século XIX? Como presenciar seus belos azulejos portugueses se deteriorando, lustre francês sem receber tratamento adequado, piso inglês sem os devidos cuidados, todo um precioso conjunto a suplicar por um mínimo de atenção? Dói-me, dói-me muito assistir a debacle lenta e silenciosa do Solar do Barão Rodrigues Mendes, tão louvado no princípio do século XX pelas belas festas nos seus jardins, organizadas por Elvira, Eugênia e Luiza, netas do barão. Como dói!
No momento em que o Brasil vive um período eleitoral, urge invocar aos atuais e futuros dirigentes de Pernambuco um olhar esmerado para os derradeiros Casarões dos séculos XIX e XX que ainda resistem. Sim, resistem, essa é a palavra certa, apesar de esquecidos. São os últimos heróis de um legado quase devastado. Deixá-los à sorte, escorados, sem manutenção, à espera de doações dos homens de alma formada, não corresponde a atos de nobreza. Não. Não posso, não quero admitir que os governantes venham a coonestar a terrível “Crônica de uma morte anunciada” de Gabriel García Márquez. A herança material de Pernambuco não merece tamanho descaso. É hora de repetir o poeta Carlos Pena Filho: “pois é do sonho dos homens/que uma cidade se inventa”. E o sonho já se concretizou na própria história de Pernambuco. Basta conservá-lo. É tão pouco!

Fátima Quintas é presidente da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br

A ALDEIA UNIVERSAL DE CÍCERO DIAS


A gente vai, volta, faz pesquisas e mudanças, mas sempre redescobre a força das raízes e da infância. É inútil o artista querer fugir à evidência dessa realidade intemporal. (...) Jundiá permanece como a capital da minha vida, em Paris ou onde quer que me encontre (Cícero Dias).


            No município de Escada, a 53 quilômetros do Recife, um menino trelava no canavial, deliciando-se com a cor vermelha do massapê oleoso e pegajento, com o amarelo-ouro de um sol que não se resignava à sombra do crepúsculo, com o brilho de um verde que se espalhava por um extenso canavial.  Dessas cores tão tropicais, vívidas, estridentes — ao contrário de Gaughin que precisou “exilar-se” na Tailândia para sentir a pureza cromática —, Cícero Dias absorveu precocemente, ainda nos verdes anos de criancice, a sua identidade pictórica, poética, humanística. E jamais negou o pacto selado na infância: uma aliança que, como todas as precoces alianças, transbordavam de si mesmas — o verde do canavial em conluio com o verde do mar. Um e outro em perfeita sintonia. O mesmo verde amado-amante de Federico García Lorca — verde que te quiero verde.
            Tudo aconteceu em Jundiá, nome indígena que significa peixe de água doce — yundi = a espinha e á = cabeça. Os malabarismos infantis o marcaram de forma indelével: fábulas, histórias mágicas, mentes povoadas por chamas mitológicas; moças bonitas com seu pisar descalço, pernas a receber o húmus da terra bem colado à epiderme; cantigas em refrão a ensinar desde então os traquejos da vida. Do núcleo primevo emanaram as fantasias de um pintor que se notabilizou nos seus inícios (1929) pelo carismático painel intitulado Eu vi o mundo... Ele começava no Recife. Esta a verdade ontológica de Cícero Dias. E de todos nós. O mundo começa e termina nas idéias lendárias da origem. De Jundiá, a menor aldeia do universo, brotavam os passos para fronteiras outras.
            O mundo nasce onde a gênese se firma, não importa se no município de Escada ou nas frenéticas Avenidas de uma Paris carregada de luz e de vanguardismos. Cícero nunca desprezou o sentimento de artista engajado nas causas sociais — justiça e liberdade. O jeito de menino aperfeiçoou-lhe a capacidade intuitiva de quem está disposto a conviver com o humano como parte integrante dessa humanidade. E as reminiscências lhe serviram de calço à estrutura de uma personalidade impregnada de cor e forma como simbolismo maior da existência. O seu universo sensorial revela-se na estética da emoção e na beleza da arte, por vezes até impactante — afinal, a arte não tem pecados; nele, as manifestações interiores desfilavam na firmeza das tintas, um dégradé que lhe enchia os olhos e a alma, ou nos recursos de uma paisagem que se transfigurasse nas sendas imberbes da meninice. De Jundiá para o infinito. De Jundiá para além de si. De Jundiá para a transcendência.    
            Pintor modernista e regionalista, adepto aos atavismos, às crendices internalizadas nos desvãos do engenho, não desprezou as brincadeiras inocentes ali experienciadas, assim como as malícias de um adolescente que já assegurava a sua identidade em glebas da Mata Sul de Pernambuco. Aos 13 anos, mudava-se para o Rio de Janeiro, em regime de internato no Colégio São Bento, sem deixar para trás as recordações de um tempo germinador. Nada modificava o caráter já formado daquele que caminharia mundo afora, carregando a saudade da cama de Jundiá, do assoalho feito de tábuas de madeira-de-lei, das aulas de pintura de tia Angelina. De que mais necessitava Cícero para compor a luta visionária, as fases inspiratórias, o destino de menino de engenho?
            A sua universalidade advém justamente de um regionalismo saudável e genuíno. O pluralismo validava um nome que se inscreveu nos muros de Jundiá alongando-se até Paris, cosmopolita, celeiro de movimentos literários, musicais, artísticos. Conviveu na intimidade com Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Ascenso Ferreira e, juntos, consolidaram respectivamente no ensaio, na prosa, no poema, na pintura a visão de um ethos representativo do retrato da nordestinidade. A arte, a sua, emergia do cheiro de melaço do amplo canavial para ganhar a dimensão universal.
            E a força da sua expansividade remonta aos sonhos preservados nos escaninhos da infância. As lembranças alimentaram o imaginário, tornando-o “um escravo da memória” ao transformar o passado em imagens significativas e metafóricas, pintura efervescente com saibo de açúcar e de doce, ao ponto, de jaca, ou com a inocência de mulheres entregues à sensualidade do sol tropical. O verde da cana a acasalar-se com o verde do mar — o mar do Recife, esse, sim, verde, verdíssimo — para transbordar no pincel inquieto de um homem enredado nos ícones fantasmáticos e dionisíacos dos tempos dos bangüês.
            Cícero Dias, o pintor do verde do canavial, do verde do mar de sua terra e “do céu mais alto do mundo”, o do Recife.          


Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br
Imagem retirada do site: http://wwwescadaresgatandonossahistoria.blogspot.com.br/2010/03/casa-grande-do-engenho-jundia.html

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CARTA A RENATA CAMPOS



Confesso que hesitei em escrever este artigo. Não temos uma relação de intimidade, porém sinto-me envolvida por um sentimento de tamanha dor e perplexidade que me encoraja a abraçá-la com fé e esperança. Às vezes, percebo-me impulsiva, mas perdoe-me, Renata, o jeito de ser: não consigo segurar a emoção; as palavras jorram num gesto alheio a mim. Então...  
Era uma quarta-feira como outra qualquer. Acordei no horário de sempre, mas estava apressada para finalizar alguns trabalhos iniciados. Sentei-me ao computador e trabalhei a manhã toda. Almoço na mesa, começava a deliciar-me com a refeição rotineira. De repente, o telefone tocou: uma amiga gaguejava do outro lado do fio. O que aconteceu... o que aconteceu... Eduardo Campos falecera em acidente aéreo. Não acreditei. Liguei a televisão, os fatos começavam a se delinear ainda desencontrados. A cena era arrepiante. Uma bola de fogo no ar, diziam os moradores do bairro de Boqueirão, em Santos. O avião despedaçara-se.
Face devastada, minha alma sofria. Eduardo Campos abruptamente se encantara. Feneciam seus tão lídimos propósitos, ainda que a determinação, o tino político, o otimismo estampado no rosto, olhos verdes/azuis, brilhantes como se fossem de cristais, riso permanente, manejo nas articulações sociais se perenizem. Perenizam-se no líder, no talento mobilizador, no idealismo transfigurado no Sonho de aglutinar ações em torno de um projeto político renovador. O carisma ofertava-lhe o escudo da perseverança, da arte do fazer humanista, da luta aguerrida por um país melhor — “Não vamos desistir do Brasil”.
            Como sabia lidar com as emoções! Tanto as políticas como as familiares. Sobretudo as familiares. É exatamente neste ponto que almejo me deter. Se político nato manteve-se em todas as horas, Eduardo jamais relaxou a ternura de pai extremado e marido exemplar. E você, Renata, a mulher em quem depositou a confiança do diálogo nas escolhas e decisões mais importantes; recatada, ao seu lado, de mãos dadas, pensamento uníssono; o mesmo curso de Faculdade, Economia, as mesmas vontades, os mesmos quereres. Sempre me chamou atenção o lado coeso dos laços domésticos que conseguiram conquistar: amaram-se, com amor absoluto, e amaram a todos que rodeavam o nicho sagrado da casa. Eduardo, apesar da agenda transbordante, jamais relaxou o apego aos filhos e à querida esposa. Havia uma fragrância de carinho, germinada desde os tempos de adolescência. A valentia e a coragem com que hoje, Renata, você vem conduzindo a tragédia que abalou o Brasil, destroçada por dentro, sabemos, mas aparentemente firme, dotada da fortaleza dos sábios e do inquebrantável compromisso em dar continuidade aos passos do homem-amado, deriva da solidez de raízes verdadeiras e hercúleas, plantadas lá atrás: você, com 14 anos; ele, com 16. Nada brota do vazio, a crença no renascimento das ideias necessita de uma origem alentadora, edificada sobre pedra. A densidade familiar resulta da agudeza dos espíritos nobres, assim, Renata, a canção da serenidade e da resistência explode.
            Tudo parece convergir no sentido de uma comunhão que se prolonga em atos subsequentes: você é filha do meu querido amigo, Ciro de Andrade Lima, homem de fé inabalável, médico voltado para o social, íntegro nas ações e na ânsia de ajudar ao próximo. Platão já apontava o belo e o bom como máximas da humanidade. Naturalmente que o equilíbrio interior não desponta sem um mastro de sustentação. Há todo um processo de evolução na mística do amor. Eduardo, Renata, Maria Eduarda, João, Pedro, José e Miguel fazem parte de uma estrutura egressa do afeto. Aí reside o vigor da construção de sólidas personalidades. 
            Este é um texto de reverência aos afinados acordes da sua família. Nele, procuro exaltar a intensidade dos elos mais íntimos. Um amor eterno. Existe uma aura, a resplendecer dessa gravura iluminada. Se todos compreendessem a significação de um alicerce doméstico bem fortalecido, o mundo seria humanamente humano.
            A morte precoce de Eduardo Campos, minha cara Renata, transformou-o num Mito, e volto a citar os gregos, agora, Menandro: “os deuses amam os que morrem jovens”. Fique certa de que o silêncio dos mortos fala mais alto que o grito dos vivos.           

Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br

Grito mudo



Como diz Drummond “Perdi o bonde e a esperança./ Volto pálida para casa”. Mas não posso deixar de bradar o meu desespero. Há algo de estranho entre os homens. Estarei sozinha na explosão interior? Creio que não. Olho o calendário, o dia, o mês, o ano. Estamos em 2014, a população da terra alcança o patamar dos sete bilhões, a rotina rebenta num frenesi insuportável, o chão treme ao impacto de tantas pegadas, “O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas,/ Para que tantas pernas, meu Deus, pergunta meu coração.”
O mundo se torna cada vez mais superficial, alheio aos apelos humanitários: valores inexistem, sentimentos se destroçam, honestidade se discute, a ética se adjetiva, cortesias desaparecem, o imediatismo impera... Olhar para o lado e avistar o outro é coisa do passado; importa a celeridade do ver e não enxergar. E a roleta da penúria moral se acentua, à medida que a vulgaridade usurpa o espaço da reflexão. Refletir para quê?, se tudo está à mostra e à venda. Nada custa caro, a honra, a integridade, a decência têm preços sem inflação. A sociedade de hoje curva-se à venalidade. O que é o bem, o que é o mal? Hanna Arendt já advertia para a banalização do mal. Viver simboliza acumular vitórias e mais vitórias, até a exaustão do sucesso. Tenho medo da mentalidade vigente e recuo diante da multidão embotada por princípios distorcidos.
            O ato de pensar se afasta da humanidade. Prevalece a ganância por uma escalada ao poder. A visão materialista se apossa das pessoas e “ter” corresponde à glória do pódio. “Ter” e não “Ser”. A patologia social embrenha-se nos cantos e recantos mais longínquos; pior, aqueles que se recusam a participar do redemoinho da insensatez sofrem a exclusão dos ingênuos. A mediocridade tem parentesco próximo à soberba, ambas andam de mãos dadas, a alfinetar a jactância com malditas persuasões. Ora, se nada é duradouro, por que perder tempo com ponderações mais profundas? Ludibriar faz parte desse palco histriônico: luzes, coreografias, matizes berrantes auxiliam a anestesia social; embriagada pelo individualismo e pela insensata altivez, a humanidade caminha.
            O capitalismo avança com suas garras sedutoras. E o mundo gira; mas tem girado em torno de um mesmo tema: a banalização. Com exceções, evidentemente. A juventude se enreda em altos decibéis, e cada acorde estrondoso consigna o atordoamento de um grupo devotado à mediocridade. Sair de casa é enfrentar o bulício de vozes, de carros que buzinam, vitimados pelo caos do trânsito; de restaurantes inebriados por músicas estridentes; de rádios ligados em volumes inaceitáveis; de vitrines reluzentes, a fascinar olhos desatentos... O que se passa?
            O Recife parece ter perdido o seu ar heráldico para se deixar emaranhar numa rede de insignificâncias. A elegância, a educação, a discrição, a gentileza, a valorização do erudito, sem esquecer do popular, a magnanimidade da sabedoria... são lembranças em extinção. E, no entanto, temos uma tradição digna de reverências. Mas, não. Pichar muros, ignorar ou ultrajar monumentos, desconsiderar os mais velhos, abandonar rituais, desprezar o patrimônio moral e material equivalem a ser moderno, a estar na ordem do dia, a endossar a fileira dos que aplaudem a decadência da cultura. Oswald Spengler já há muito anunciava tal abismo. Não, não é possível cruzar os braços; as coisas não vão bem. Enquanto a ordem familiar e social não se conscientizar da sua própria ruína, nada poderá ser feito.
            Sei que sou considerada antiga, apegada a valores tradicionais, vencida por sonhos quase delirantes; mesmo assim, uso a palavra como único meio de alerta, palavra que também se encontra enfraquecida, anêmica, quase agônica. Tenho certeza, entretanto, que ainda é hora de repetir Chesterton: “Não apenas estamos no mesmo barco, como todos sentimos enjoo”.

Fátima Quintas é presidente da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br