quarta-feira, 23 de março de 2016

TEMPO DE HOMENS PARTIDOS



Da varanda do meu prédio, vejo o mundo se agitando. As árvores dos fundos de quintal neutralizam o som dos carros; criam um hiato entre o que se passa do lado de lá e o que se passa do lado de cá — linha divisória a formar um meio círculo, como se o meu mundo se dividisse entre a minha intimidade e a explosão de ruídos que se espalham no espaço público. Entre a casa e a rua existem insondáveis mistérios.
            Tenho dito sempre que gosto do recôndito, daquele cantinho que é meu, das reflexões do quarto de estudo, dos livros que leio e releio, de tudo que diz respeito a minha pessoalidade. Sou um ser latejante de emoções, não receio a lágrima que desce do rosto, denunciadora do meu temperamento introspectivo. O lado de lá reflete um outro cenário, pleno de atores circenses: drama e comicidade convergem para um mesmo espetáculo. E as cortinas estão sempre abertas para uma plateia anônima — as máscaras reinam. Do lado de cá, o rosto desnudo se mostra ao espelho. Não adianta esconder as rugas visíveis, tanto quanto a expressão de desencanto diante de esdrúxulas contradições.
            Sou ambígua, carrego oposições, faço questão de construir-me “entre” alguma coisa. Sou “entre”. Será que estou enganada? Nunca duvidei das incertezas que me alimentam. Sei pouco e sou pouco, isso me basta. Opto pela humildade dos anacoretas em contraste com a arrogância dos poderosos. Somos tão pequeninos que poucos se satisfazem com a moderada ambição; querem alcançar o pico da montanha sem antes escalá-la. No Brasil, a ânsia de poder atinge níveis incalculáveis: mente-se, tripudia-se, engana-se, contanto que o suposto domínio sobre os outros venha a prevalecer. O humanismo desce ladeira abaixo, conceito desgastado, fora de época, ridículo. Importa esmagar o outro, exaltar o status, enaltecer falsas competências: tudo isso em nome das ressonâncias sociais que bajulam os mais fortes e esbofeteiam os mais fracos. O Brasil carece de decência, do mínimo de vergonha, de posturas corajosas e dignificantes.
            Triste do homem que não é capaz de existir por inteiro, que se deixa fragmentar sob o jugo de um poder assentado no favorecimento. Nada melhor que a metáfora de Drummond para exprimir um sentimento complexo e quase sempre tripudiado: “Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./Sem uso,/ela nos espia do aparador”. E mais adiante revela: “Este é tempo de partido,/tempo de homens partidos./Em vão percorremos volumes,/viajamos e nos colorimos./A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua./Os homens pedem carne./Fogo./ Sapatos./As leis não bastam./ Os lírios não nascem/ da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/ na pedra”.
            Homens partidos não conclamam a paz, destroem-se em inúteis retalhos. Amam o poder acima de todas as coisas, porque são tão efêmeros que não têm tempo de se perceberem humanos. Os relógios parados continuam girando para aqueles que entendem a vida na sua finitude. Homens partidos nada edificam, servem apenas para fomentar a discórdia, dilatar a própria raiva no seu ego minguado, homens sem norte, apoiados em pedestais de papelão. Ao mínimo descuido, tombarão do seu último degrau. Homens partidos fenecem precocemente e em pó hão de desaparecer.
            Os poetas não calam, os seus símbolos são mais fortes, transcendem a miséria do poder, para alçar a eternidade das palavras — tão somente das palavras. A única eternidade possível. Tudo mais é passageiro e miúdo. O poeta pereniza-se na ênfase do dito. O seu poder se crava na alma até daqueles mais insensíveis.
            E todas essas conexões me chegaram livremente. Ou talvez dos versos de Drummond: “O bonde passa cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração./Porém meus olhos/não perguntam nada”.
            Continuo na varanda, esmagada por um Brasil agonizante. E peço licença a mais um poeta, Daniel Lima: “Sufocarei se não gritar agora./Deixa, Senhor, que eu blasfeme/na danação desta hora./Preciso ser maldito/para sentir-me salvo./Se permitires que eu blasfeme agora,/verás, Senhor, que essa blasfêmia/é apenas/um jeito de oração de amor magoado”.
Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras, E-mail:fquintas84@terra.com.br