Passara...
o momento. Atravessou com atenção. As ruas se entrecortavam e nem havia sinal
de trânsito. A tarde brumosa, pálida, sem luz, a atmosfera se acanhava por
entre os olhos de Maria Clarissa. Que imaginava ela? Todos os dias, à mesma
hora, circundava aquele caminho, já tão seu conhecido. O ato mecânico — de anos
repetidos —, quantas vezes a confundiu na acídia do não pensar? Então ia e
vinha sem dar conta de si. Melhor assim. Quando o corpo comanda a prática do
agir e anula possíveis divagações, a mente se esvai na inutilidade do nada.
Priscila, sua neta, saía da escola às 17h30 e o percurso cotidianamente
trilhado lhe era por demais familiar.
Avistou
a vizinha, cumprimentou-a. Estava entediada para falar com alguém, não se animava
a manter qualquer tipo de conversação. Adiantou o passo para evitar perguntas descabidas; o aceno de mão
parecia-lhe suficiente no cumprimento das regras de etiqueta. E depois... não
tinha por que demorar-se com vazias elucubrações. Na parada de ônibus, um casal
de namorados brigava, ele se amuava, ela repisava a mesma frase. “Eu te amo”.
Nada mais. Maria Clarissa procurou entender o silêncio do rapaz, olhou-o com
zelo maternal, doía-lhe o sentimento de perda, o amor rondava o nebuloso
espaço. O mundo a sobressaltava com truculentas significações e, no meio da
estrada, havia tantas ruelas indicativas que a menor escolha se tornava
embaraçosa. As encruzilhadas amedrontam, os escuros se apresentam indefinidos,
as indecisões acabam prevalecendo. Deteve a caminhada.
Acompanhou
o rosto de alguém sem nome, o do rapaz. Entre o sim e o não, impunha-se a
vitória do não. Os cabelos pretos caíam-lhe sobre a testa, a vista baixa se
defendia, agora, da acusação da moça; o sussurro da voz feminina declinava
longe, longe, inaudível. Quanto mais falava ela, tanto maior o silêncio dele se
petrificava, a face contraída. Tez morena, mãos alongadas, o peito sumia num
ato de discrição. O rubor o afogueava, sem abalar a seriedade da fisionomia. De
repente, Maria Clarissa desejou interferir no descompasso do afeto. Os seus
cinquenta e dois anos davam-lhe o direito de atuar com suposta autoridade. É
bem verdade que os precoces cabelos brancos – ah! há quanto tempo não os
pintava?!— acrescentavam idade, o que a favorecia na posição de interlocutora.
De qualquer forma, indagou-se: Por que o abandono de si? Qual o motivo do
abatimento? Desde quando não se embelezava? Tinha sido uma mulher bonita, alta,
esguia, o porte a combinar com a personalidade forte. Desistira de viver? Afastou os pessimismos,
não queria se molestar com perguntas à toa.
A moça
se agitava; ele, o rapaz, investia-se de uma tristeza a beirar o imobilismo. O
peso lhe era insuportável, qualquer palavra poderia estornar o sentimento ainda
vivo. Maria Clarissa recuou o impulso e desistiu de qualquer interferência. Não
lhe cabia reinventar um outro mundo. E depois, o que teria a dizer? O temor do
erro a fez retroceder. Tantas vezes se equivocara! Sim, ninguém mais que ela
conhecia os desacertos de encontros malsucedidos. Lutara como uma guerreira. Em
vão.
O
caminho de volta. Priscila narrava as peripécias da escola. Mostrava-lhe os
desenhos, as folhas de papel desordenadamente rascunhadas, as tarefas de
casa... Maria Clarissa não escutava som algum. Como se a cena anterior a
perseguisse – e os namorados? Queria ainda vê-los, mesmo que o silêncio dele e
o monólogo dela se misturassem em mistérios insondáveis. Adiantou as pegadas,
Priscila reclamou o açodamento, apetecia-lhe tomar um picolé com um tablete de
chocolate. Entrou fugida na padaria. A avó a acompanhou sem disfarçar a
aflição. Irritou-se. Aquiesceu.
Alegou
afazeres. Precisava retornar. Deixara a ceia por terminar. Apesar dos
insistentes apelos de Priscila, não esperou que a garota saboreasse com a
devida calma a merenda-extra. Maria Clarissa andava obstinada. Nada a
retinha. Iria ajudar o casal de
namorados, decidira num lampejo de segurança. Sequer titubeava diante da frase
a ser enunciada com a ênfase definitiva dos mais velhos. Chegou ao ponto do
ônibus. Aproximou-se. A fila diminuíra, mas havia gente aguardando o
transporte, gente sem rosto, todos iguais, quase fantasmas com imprecisão
carnal.
O rapaz,
sozinho, cabisbaixo e pensativo, caminhava na calçada oposta. Era o fim ou o
começo de um mesmo amor?