terça-feira, 30 de maio de 2017

A Passagem das Horas



Todos os dias, repriso os mesmos rituais: alguns mecanicamente; outros com a consciência viva do que estou fazendo. Acordo, descerro a cortina, vejo a natureza, enxergo os detalhes do dia através das robustas árvores que desfilam à minha frente. A mangueira me parece tão familiar que converso com ela como uma cúmplice que me acompanha ao longo do dia. Não gosto de levantar-me bruscamente, preciso da sagrada liturgia. Por temperamento, entrego-me ao cerne das coisas; não me apraz a superficial externalidade. Existo devagar.
            Ao embalo de um despertar moroso, os momentos matutinos acontecem, tendo o sol ou a chuva a comandar a atmosfera. O sol me agride com o seu excesso de luz; o céu nublado me acolhe na semi penumbra do afago.
São nove horas: leio um livro, assinalo frases, telefono para amigos, dirijo-me ao computador, penso no que quero escrever, escrevo, não escrevo, sigo os momentos sequenciados com a cautela dos que temem possíveis imprudências. A par disso, os ponteiros continuam girando no avanço inexorável. De repente, o minuto passou, foi-se sem a minha permissão. Afoita, eu. Desde quando controlo essa ciranda permanente? Estou sempre a meio de alguma estrada porque as conclusões me incomodam, desejo ir sem limites, há pensamentos que me seguem, o ponto e vírgula me agrada, adiante, adiante, uma pausa apenas, por favor. Vigio o relógio. Ainda tenho tempo para acrescentar mais uma frase no texto. 
            Meio-dia. O que representa a metade do dia? Ah! se eu soubesse mensurar a cronologia irreversível! Vou e volto no corredor, mas a mesa está posta para o almoço, é hora da reunião em família. Gosto de ouvir os comentários em torno do banquete faustoso. Risos, alegria, uma pitada irônica, ilações diversas...
            A tarde se aproxima numa prolongada louvação ao crepúsculo. Há um corre-corre que a torna mais rápida e turbulenta. O mundo gira em velozes partituras, a pós-modernidade acelera o ritmo, a difusão dos fenômenos se instala.O frenesi distorce a dimensão reflexiva do mundo. O crepúsculo se inicia, o céu se faz em sombras, já é noite.
            Brusco, num piscar de olhos, a natureza tropical dá lugar à presença da lua — são 18 horas. O compasso entre o dia e a noite parece regido por uma sinfonia bem orquestrada ou talvez a noite brigue com o dia para logo assumir-se em plenitude. E cedo chega. De inverno a verão; minutos a mais, minutos a menos. Mas o dia é guloso nos seus fachos luminosos. Exibe-se tal qual espetáculo histriônico, enquanto a noite se esconde por entre fantasmas apaziguadores.
            Chego em casa, olho a mangueira, recupero a quietude, janto frugalmente, recolho-me. No claustro do meu gabinete, renovo a meditação da vida. Sento-me na poltrona para inventariar o dia — hábito que nunca me largou. São 20 horas: recolho os retalhos de mim em sossego. As máscaras impostas, a multiplicidades dos eus, as várias cenas ficaram para trás. Fui tantas em um só dia que chego algumas vezes a orgulhar-me do talento do meu personagem.
  Meia-noite, o relógio a tiquetaquear — respiro fundo e assalta-me o vazio da inutilidade de uma jornada sem nome. Então lembro o poeta Daniel Lima e me refaço da passagem das horas: “Nada será jogado no vazio./Nem mesmo o vazio da vida,/porque é vida./Nem mesmo o gesto inútil,/pois—que é gesto,/Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,/pois—que é possível./Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,/porque é promessa./E o próprio impossível/é vontade absurda de existir./ E nisso existe.”
           

           


sábado, 27 de maio de 2017

Velas e Velas



                              Mesmo na noite densa e escura, há tochas que me iluminam: castiçais acesos. Olho-os. Velho hábito que me acompanha desde a adolescência. As chamas me fascinam por incitar o bulício interior de destroços já em ruínas. O fogo me convida a intensas mutações. Em fervorosa doação, entrego-me ao calor excitante. Esqueço o tempo, o espaço, sou apenas um pensamento vazio. Consigo elevar-me às dimensões etéreas do nada. Então, alcanço o paroxismo da interioridade. E ao badalar da meia-noite, quando todos dormem e o mundo parece estagnado na circunferência do sono, eu elaboro a existência.
                              As velas choram. A sua essência repousa entre a alegria e a tristeza, entre o sim e o não, entre o dia e a noite. O fogo sugere êxtases gloriosos, as lágrimas decantam apelos soterrados.  Ao longo do cilindro de cera, os pingos vão se acumulando até formarem indecifráveis estalactites. Do pequeno choro às cataratas do espírito, o ritual tem começo e fim, semelhanças e diferenças, compassos e descompassos. Espio a vela, a vela me espia.  A proximidade se faz tão amiúde que a vela fala por mim. Uma interação silenciosa, firmada na simbiose da cumplicidade.
                              Sou adepta da cerimônia das velas. No vácuo da noite, entre a vigília e o sono, acendo-as com a avidez de quem se posta em uníssona oração.  O pavio virgem, as mãos em lenta gesticulação, o fósforo riscado estimulam-me diante da cena. O ritual dos castiçais me convoca à consagração dos desejos. Por enquanto, devoro apenas com ritmo paciente o choro das velas. Ao redor da chama, uma aura indecifrada. Do vermelho matizado à própria fumaça que se espraia sobre a retangular mesa de jacarandá, não se instalam hiatos entre o calor da vela e o frio do choro.  Não estou a meio, estou no mimetismo dos heráldicos castiçais. Tenho receio de que alguém me leia, afinal, o meu sussurro é recôndito, quero-o para dentro, bem guardado nos solipsismos do coração.
                              As inquietações não cessam, mas a vela se apaga ou queima até a derradeira possibilidade de exibir-se. Lentamente se vai. Um adeus devagar, discreto, mudo, mas finito.  Resta um belo quadro de lágrimas à sombra dos estalactites em desenho abstrato, difuso, assimétrico. O escuro se agiganta. O ritual termina. Serei eu a única a celebrar a cerimônia do fogo e da lágrima?



                                                                                                      

A avó paterna



Minha avó paterna, Laura Pacheco Quintas, costumava dizer: “Boa romaria faz quem na sua casa está em paz”. E de tanto repetir a frase, absorveu-a de tal maneira que cumpriu na íntegra a sua mensagem. Raramente saía. Ou melhor: só saía para ir ao médico. Dias, meses, anos, a avó Laura se refugiava no claustro doméstico. Falava muito, reclamava da modernidade à época, vigiava os vizinhos com assídua atenção;era uma mulher voltada para a monotonia dos hábitos. O mundo reduzia-se à sua casa conjugada, de vila, em Casa Amarela. Arguia-se de uma enorme dificuldade de externar sentimentos — monocórdia na dinâmica familiar. Aliás, uma dinâmica que se reprisava todos os dias, sem surpresas ou novidades, salvo os acontecimentos imponderáveis;não me lembro de comemorações, tampouco de dias incomuns, o cotidiano ali se repetia como um disco de vinil arranhado, cuja agulha não muda de faixa.
            Não fora o avô paterno, Gabriel Soares Quintas, personalidade extremamente original, a estrutura doméstica se quedaria em algo tão linear que só a morte poderia rachar o bloco granítico. E assim foi. A avó avocou-se de um domínio férreo: nada de variações, os costumes perpetravam liturgias eternizadas.O dia começava com o canto do galo.Auroras não traziam prenúncios de novas horas; sim a continuação de um tempo estático, onde somente o relógio, o belo relógio tipo oito, massacrava os ouvidos, badalando de quinze em quinze minutos, como se a cronologia anunciasse a finitude nos seus quartos de hora. Representava um som tumular do qual nunca consegui me livrar. Lembro-me que quando lá chegava pedia para desligá-lo. O avô tentava, mas acabava por me convencer a aceitar o rimbombo tonitruante; surdo, completamente surdo, não o abalavam os sons externos; seus ruídos emergiam de dentro.
            E a avó Laura reverberava as mesmas frases, os mesmos monólogos, as mesmas reclamações: rosto redondo, cabelos ralos, lisos, lábios finos, estatura baixa, mãos pequeninas, amava as percussões ritmadas; não gostava de ler, não gostava de cozinhar, não gostava de arrumar a casa, não gostava de ouvir rádio, não gostava de música; ela, a avó, deleitava-se com a vida congelada. Os aposentos da pequena casa distribuíam-se entre duas salas e três quartos, uma cozinha mínima, dependência de empregada e um modesto jardim, que logo foi acimentado para poupar serviços a mais. Um jardim acimentado..., assim como a casa, estagnada em anódinos murmúrios..., assim como o vazio de emoções.
            Às onze horas em ponto, o almoço à mesa, toalha branca de damasco, louça simples, talheres comuns. A refeição transcorria em silêncio. A tarde, quase sempre morna, denunciava um ir e vir pelos aposentos. E “à las cinco de la tarde”, à Federico García Lorca, a ceia posta: leite, café, pão, queijo e chá de camomila. E o relógio, anunciando a passagem do tempo.    
            Ao cair do crepúsculo, os postigos da porta da frente se abriam discretamente — minha avó ia assuntar a rua; tomava conta do mundo pelas brechas daquela porta quase sagrada, por simbolizar um meio de enxergar para além da imobilidade interna.
            Relógio a tiquetaquear vinte horas, momento em que a avó Laura se deitava — ar petrificado, quietude imposta, paralisia dos móveis. O avô Gabriel, com seu jeito transgressor, lia à luz do abajur. Chamava-me para perto dele. E a vida então começava sob o embalo dos quartos de hora.




A literatura é um jogo



O homem conformado com o mundo não está pronto para escrever. A resignação paralisa, impede qualquer movimento. É preciso um mínimo de inquietação para deixar-se explodir em desabafos. As entrelinhas de uma escrita, com silêncios prolongados, fantasmas implícitos, ocultas sugestões, derrapam em um cenário que se modula à maneira de cada um. Não há como fugir desse jogo tão instigante que se chama literatura. Tudo isso me vem à mente a partir do excelente tema, rico de complexidade e beleza, escolhido pela Fliporto 2013: “A Literatura é um jogo”. Assim como a vida também o é. Quantas vezes a vida surpreende mais que a literatura? Somos reféns de um destino ignorado:“duelo” que se faz intrigante na medida em que bifurca o placar — vitoriosos ou derrotados. Destino é uma palavra perigosa, implica em tantas conotações que tenho receio de usá-la. Mas ela existe e aponta inúmeros caminhos que confundem a escolha. Nem sempre temos consciência de qual jogo jogar. Então, a literatura abriga os desassossegados, os apreensivos, os impacientes — embate a exigir emoções e sentimentos.
E a disputa se inicia quando o “eu” agrupa vários “eus” em uma partida nem sempre harmoniosa. O conflito dá ensejo à roleta do pensamento. Refletir decorre de uma dúvida atormentante. A inspiração corresponde à pulsão de vida; sem ela o desejo desaparece e o abismo do vazio aflora. Nem sempre estamos inspirados para preencher uma folha de papel em branco, mas aliados, sim, à máquina propulsora de evocações;são as reminiscências, mexidas e remexidas, que tecem o sonho, ressignificando-o em símbolos e metáforas. O jogo resulta dos próprios desencontros. E o tempo é a matéria prima desse jogo. 
            Escrever é desabrochar-se em signos, utilizando a palavra como meio libertador. O drama humano reclama por portas de saída. A angústia favorece a compreensão da existência, delegando à literatura o ato de exorcizar as agruras da alma. Há uma voz que fala através da letra: as exclamações despontam;as interrogações, também. E tudo parece desaguar numa pergunta que jamais será respondida. Impossível decifrar o mistério da existência! Que os vulcões interiores entrem em erupção; somente assim a humanidade poderá caminhar na direção do incognoscível. Cada palavra desenhada expressa o que lá de dentro emerge, dando forma a uma peleja que convive com o ontológico. A literatura é feita de flashes da vida;por efeito, como fugir desse embate constante e imprevisível? O jogo persiste.
            No túnel do dizer, a cronologia tem forte representação. Lembranças de infância acorrem como se a nossa história retornasse ao passado, tempo realmente sólido que nos fortalece. Joaquim Nabuco já afirmava que a infância é a fonte da nossa ebulição. E Proust construiu sua obra em base de memórias aparentemente perdidas, porém reencontradas. A memória consiste no fermento da escrita; dela brota o processo criativo. Sem receio de errar, oferto à memória o elemento desencadeador de toda narrativa. Impossível imaginar que semeamos do nada. As anterioridades, já advertia Ernesto Sabato, são transbordamentos de um eu-vivente. A memória tem o poder cumulativo, nela agregam-se várias caixinhas, umas mais recentes, outras distanciadas, além daquelas arcaicas. A soma dos séculos que em mim habitam provoca um redemoinho de épocas que servem de alento ao ato de devanear. O encadeamento acontece tal qual elo de sustentação. E a batalha pede armistício, reivindica a paz que deriva do fenômeno da palavra.
            A Literatura é um jogo entre o homem, o tempo, a memória e a existência. Um jogo que tem árbitro implacável e regras nem sempre conhecidas. Não adianta camuflar as pedras da contenda, porque prevalecerá sempre a contingência do humano. Continuar em pleno jogo é a única forma de entender a literatura.

                       



Viagem de Táxi


Entrei no táxi, um carro de tamanho médio, não conferi a marca; de pronto, o espaço interno me chamou a atenção. No chão, pequenos tapetes de cores diferentes, nos assentos e encostos, mantas verdes distribuídas ordenadamente, além de variados pôsteres do Coração de Jesus e de Nossa Senhora da Conceição.  A decoração transmitia um misto de fé e de mau gosto, cenário sem a mínima harmonia estética. O chofer assumiu a direção — gordo, falante, dionisíaco. Deu-me um largo bom-dia, o cabelo preto, liso e sedoso, modelava o rosto, sobrancelhas grossas, lábios polpudos, face rosada, a imagem projetava um temperamento extrovertido, pulsante. Sentei-me e ouvi um convicto monólogo: “Sou um homem que acredita em Deus, nos santos, nas ordens do céu. Trabalho com prazer, conheço ruas, avenidas, praças e tenho a certeza de que vou para o paraíso celestial. Nada é feito sem o comando do lado de lá. Não há razão de infelicidades; basta acreditar na glória divina”. 
Surpresa com tantas divagações, perguntei: “Desde quando o senhor é taxista?” Ele virou o rosto e fitou-me: “Sou formado em Direito, empreguei-me numa média empresa, mas a monotonia do trabalho e o salário baixo levaram-me a pensar em outra profissão. Então decidi fazer alguma coisa mais dinâmica, que tivesse contato direto com as pessoas; gosto de gente, de conversar, de conhecer o mundo através das ideias do outro. Aqui eu convivo com rostos diversos, do mais eloquente ao mais humilde. Neste carro transitam ateus, católicos, evangélicos... Sabe, doutora, a religião condiciona o comportamento humano. A razão e a emoção dependem da estrutura de cada um; todos os indivíduos são enriquecidos por um aprendizado diário. A religião é a base, mas não somente; a educação tem valor imprescindível. E o nosso país carece de elementos de origem. Daí o caos em que mergulhou”.
Saí do carro um tanto atordoada. Havia um claro descompasso entre a estética, a religião e a existência. Em tão pouco tempo, não fui capaz de discernir os hiatos predominantes. De qualquer forma, constatei mais uma vez, a complexidade inerente ao ser humano. E o taxista se foi, perfilando o mistério de cada um.
Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. E—mail: fquintas84@terra.com.br       


Zonza-zonza


O mundo gira ao meu redor. Estou zonza. Não sou, entretanto, o epicentro de um mandala em cuja construção sequer colaborei –  esse rabisco geográfico que se chama espaço elaboraram-no por mim. Vejo o que é concreto, mas enxergo com mais profundidade o abstrato, o invisível, as entrelinhas. A obviedade me fatiga, não me seduzem as conclusões aligeiradas, fruto de óbvias inferências. Os revestimentos artificiais não resistem à ação da menor ventania. Qualquer aragem supostamente rebelde poderá esgarçar o modelo da circunferência. Disseram-me, ainda pequenina, que o universo é redondo, daí o excesso de zonzeira que me acode. Ao lado dos códigos irrefutáveis, descubro o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: “As cousas não têm significação – têm existência./ As cousas são o único sentido oculto das cousas.”
Vale o que sinto, não o que apalpo. Capto o inexistente. Não estou presa ao círculo sensorial, nem comungo dos ensinamentos dogmáticos. Exaurem-me as ideias concebidas sob severas precisões. A minha humanidade rejeita qualquer verbo conjugado no imperativo. Esqueço os mandamentos que um dia me subjugaram ao receituário da perfeição, vou além, abandono as virtudes inodoras e incolores...  Quantas vezes andei sobre pedregulhos? Vivo o minuto, cada um, não traço planos para o instante que se segue; ele já passou,  nada fiz, deixei-o ao largo, um tanto à deriva — eu própria navego em um barco adernado. Voltarei à proa. Careço da imensidão dos horizontes, dos portos inatingíveis, de tudo que me leve ao desatino do sonho. Busco a volatilidade da criação e as miragens arquetípicas...  “Meus sonhos têm asas/ e saem do mar”.
Tenho lápis e papel. Faltam-me, contudo, palavras. Tento juntá-las, mas os sons não se harmonizam, há sílabas a mais e imaginação a menos. Não me conformo com essa infertilidade, necessito expandir os limites do mundo ou reinventá-los à luz da libertação. Serei capaz de ultrapassar as fronteiras que me embargaram, ou a minha infante aventura é de tamanho diminuto?  A folha de papel, antes tão larga e desértica, nela não fui capaz de escrevinhar o nome desejo. E, em meio a eufemismos, escapo valentemente do parágrafo por concluir. Se neguei-me o direito da espontaneidade, pelos menos assumo a consciência da incompletude. 
Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. Email: fquintas84@terra.com.br