sábado, 10 de junho de 2017

INDECISÃO


                                        Passara... o momento. Atravessou com atenção. As ruas se entrecortavam e nem havia sinal de trânsito. A tarde brumosa, pálida, sem luz, a atmosfera se acanhava por entre os olhos de Maria Clarissa. Que imaginava ela? Todos os dias, à mesma hora, circundava aquele caminho, já tão seu conhecido. O ato mecânico — de anos repetidos —, quantas vezes a confundiu na acídia do não pensar? Então ia e vinha sem dar conta de si. Melhor assim. Quando o corpo comanda a prática do agir e anula possíveis divagações, a mente se esvai na inutilidade do nada. Priscila, sua neta, saía da escola às 17h30 e o percurso cotidianamente trilhado lhe era por demais familiar.
                                        Avistou a vizinha, cumprimentou-a. Estava entediada para falar com alguém, não se animava a manter qualquer tipo de conversação. Adiantou o passo para  evitar perguntas descabidas; o aceno de mão parecia-lhe suficiente no cumprimento das regras de etiqueta. E depois... não tinha por que demorar-se com vazias elucubrações. Na parada de ônibus, um casal de namorados brigava, ele se amuava, ela repisava a mesma frase. “Eu te amo”. Nada mais. Maria Clarissa procurou entender o silêncio do rapaz, olhou-o com zelo maternal, doía-lhe o sentimento de perda, o amor rondava o nebuloso espaço. O mundo a sobressaltava com truculentas significações e, no meio da estrada, havia tantas ruelas indicativas que a menor escolha se tornava embaraçosa. As encruzilhadas amedrontam, os escuros se apresentam indefinidos, as indecisões acabam prevalecendo. Deteve a caminhada.
                                        Acompanhou o rosto de alguém sem nome, o do rapaz. Entre o sim e o não, impunha-se a vitória do não. Os cabelos pretos caíam-lhe sobre a testa, a vista baixa se defendia, agora, da acusação da moça; o sussurro da voz feminina declinava longe, longe, inaudível. Quanto mais falava ela, tanto maior o silêncio dele se petrificava, a face contraída. Tez morena, mãos alongadas, o peito sumia num ato de discrição. O rubor o afogueava, sem abalar a seriedade da fisionomia. De repente, Maria Clarissa desejou interferir no descompasso do afeto. Os seus cinquenta e dois anos davam-lhe o direito de atuar com suposta autoridade. É bem verdade que os precoces cabelos brancos – ah! há quanto tempo não os pintava?!— acrescentavam idade, o que a favorecia na posição de interlocutora. De qualquer forma, indagou-se: Por que o abandono de si? Qual o motivo do abatimento? Desde quando não se embelezava? Tinha sido uma mulher bonita, alta, esguia, o porte a combinar com a personalidade forte.  Desistira de viver? Afastou os pessimismos, não queria se molestar com perguntas à toa.
                                        A moça se agitava; ele, o rapaz, investia-se de uma tristeza a beirar o imobilismo. O peso lhe era insuportável, qualquer palavra poderia estornar o sentimento ainda vivo. Maria Clarissa recuou o impulso e desistiu de qualquer interferência. Não lhe cabia reinventar um outro mundo. E depois, o que teria a dizer? O temor do erro a fez retroceder. Tantas vezes se equivocara! Sim, ninguém mais que ela conhecia os desacertos de encontros malsucedidos. Lutara como uma guerreira. Em vão.
                                        O caminho de volta. Priscila narrava as peripécias da escola. Mostrava-lhe os desenhos, as folhas de papel desordenadamente rascunhadas, as tarefas de casa... Maria Clarissa não escutava som algum. Como se a cena anterior a perseguisse – e os namorados? Queria ainda vê-los, mesmo que o silêncio dele e o monólogo dela se misturassem em mistérios insondáveis. Adiantou as pegadas, Priscila reclamou o açodamento, apetecia-lhe tomar um picolé com um tablete de chocolate. Entrou fugida na padaria. A avó a acompanhou sem disfarçar a aflição. Irritou-se. Aquiesceu.
                                        Alegou afazeres. Precisava retornar. Deixara a ceia por terminar. Apesar dos insistentes apelos de Priscila, não esperou que a garota saboreasse com a devida calma a merenda-extra. Maria Clarissa andava obstinada. Nada a retinha.  Iria ajudar o casal de namorados, decidira num lampejo de segurança. Sequer titubeava diante da frase a ser enunciada com a ênfase definitiva dos mais velhos. Chegou ao ponto do ônibus. Aproximou-se. A fila diminuíra, mas havia gente aguardando o transporte, gente sem rosto, todos iguais, quase fantasmas com imprecisão carnal.
                                        O rapaz, sozinho, cabisbaixo e pensativo, caminhava na calçada oposta. Era o fim ou o começo de um mesmo amor?