Fátima Quintas
As metáforas me levam à reflexão. A solidão é apenas física, nunca ontológica. Estamos juntos na multiplicidade dos eus. Em cada pedaço, uma partícula e, em cada partícula, a unidade. Contradição? Não há como fugir dos estilhaços que compõem o lastro existencial, por isso carrego as frações internas, algumas em sintagma, outras singularizadas, uma a uma, a desenhar uma paisagem plena de recortes.
Ando por aí, perseguindo o desejo de defrontar-me com os eus. E eis-me diante de um velho sobrado, desconhecido, anônimo. Olho-o. De novo reavivo imagens do poeta: “A sombra dele escorrega/ defronte, também, há três/ séculos, e escora a sombra de outro sobrado holandês.” Estou no bairro de São José; perscruto atentamente o casario longilíneo. O quadro em descompasso me aproxima, não me afasta. Prédios conjugados: alguns relativamente em forma; outros decadentes. Toda decadência tem um quê de dignidade porque se mescla com o mistério das coisas por findar, algo instigante, fantasmático.
Os fragmentos de mim, vejo-os; a exterioridade das paredes em declínio, também as vejo. Há uma fusão no cenário. Tijolos começam a desprender-se do velho sobrado, tão parecido à montagem do meu retrato. Estou em toda a parte e em lugar nenhum, e, no entanto, sou sólida catedral, porque existo, porque sinto, porque hospedo sentimentos universais. As palavras brotam, dispersas, à semelhança dos pedaços que me dividem e me multiplicam. Há um crescimento interior que ganha intensidade e volume à medida que o calendário avança. Já fui ontem; hoje, sou agora; e será que não serei futuro ao concluir esta frase? As minhas circunstâncias mudam, dia a dia os retalhos aumentam e acompanham-me para onde eu vou. O caro poeta tem toda razão. Quem disse que me aparto dos eus? Sou uma sombra no sobrado que me recebe em quietude. Sob a sua proteção, sinto-me companheira de todo o desmonte físico que o acomete. A desconstrução faz parte do próprio mundo. Do meu e do sobrado. O importante é vigiar com atenção os entulhos que se amontoam na caminhada.
A memória me agasalha na lembrança infinda. Mauro Mota indaga: “Que homens e passarinhos aqui germinarão?” A semente que fecunda está dentro de cada um, a alimentar o jardim das ternuras, a adubar emoções que explodem em outras plagas. A humanidade desabrolha ao surgir da alvorada, quando as esperanças renascem, grãos que frutificam a condição humana.
O sobrado sacolejou o meu nicho de saudades. Não sei bem por quê. Nem quero adivinhar. Basta-me compreender o que aparento e o que o sobrado expõe. Do lado de fora, o excesso de visibilidade; do lado de dentro, eu me escondo em frágeis subterfúgios. No fundo, as saudades se avolumam; misturo emoções, retorno à adolescência, à Rua Amélia, à Bento de Loyola — ruas onde morava Mauro Mota —, às conversas ao anoitecer, ao riso generoso, à bondade ilimitada, à fina ironia, ao lirismo, ao romantismo, aos poemas profundos, a uma época que me pertence e que me ajuda a superpor os meus retalhos. Mais uma vez repito versos que ressoam, e ressoam com a força da presentificação. Então descubro que há um só tempo — o que vivo: “Vou em busca do ter-sido./Desapareço no espaço./ Fico de novo perdido./Procuro-me, e não me acho”.
Viver consiste na intensa procura e na certeza de nunca achar.
OUTRO DIA... OUTRA HORA...OUTRO LUGAR...OU QUEM SABE SEMPRE O MESMO, PARA SEMPRE, ETERNAMENTE...
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