Fátima Quintas
Ela, no quarto, dorme. Ele, de pé, olha-a. Dois corpos separados pelo elo do amor. As pernas torneadas, o corpo relaxado, a pele aveludada dão a sensação de uma estátua esculpida por mãos de artista. O belo ali está: os seios rígidos, a cintura em curva, o colo largo, a exibir um fino e precioso trancelim de ouro; as mãos com dedos longilíneos, unhas em esmalte incolor, e o cheiro calmante de lavanda inglesa, exalando fragrâncias seráficas. Ela, uma mulher, com requintes de ser mulher. Ele, um homem, abandonado no seu olhar intenso. Penetrante.
Não se mexe, os músculos estão
retesos, a voz tenta balbuciar algumas palavras, mas não diz nada. Não é tempo
de falar. Nem teria o que dizer, ali o silêncio prevalece em respeito ao muito
que deveria pronunciar. Mira apenas. Percebe a beleza do corpo, do outro. Ela
possui a tez alva, os cabelos de um cacheado largo, louros, sedosos. Os olhos
grandes, azuis, com sobrancelhas grossas, bem delineadas. A boca, um pouco
entreaberta, sensualmente entreaberta, permanece imóvel, a deixar correr um fio
de respiração, o que a torna ainda mais provocante. A camisola bege, de uma
transparência proposital, serve de moldura a um quadro com desvelos
impressionistas. Tudo é real e, no entanto, há algo esfumaçado na figura da
mulher.
O homem relaxa os músculos, as
pernas se afastam da posição ereta, há um momento de lassidão. As costas
dobram-se, ele consegue mexer-se, chega a curvar-se para tocá-la, recua,
desiste do ato imprudente. E não se ouve o menor ruído no quarto mudo. A mesa
de cabeceira ao seu lado, tão próxima e distante. Não se comove com o seu
olhar, jacarandá maciço, herança da avó, dela, a mulher deitada na placidez do
sono. Ele a quer. Sempre a quis, nunca declinou desse desejo tão fiel à sua
massa corpórea. O peito arfando uma vontade incontrolável. À medida do
impossível traça o contorno da imobilidade.
Sobre a mesa de cabeceira, um livro
marcado, nem chegara ao meio da leitura, páginas e páginas por ler, o livro
repousa tranquilo à espera de quem o toque. Não lê o título o homem em pé.
Prefere adivinhar o gosto da mulher, a mulher que ele ama, deitada, em paz. A
dormir. A respiração comedida. Expirando, inspirando, um vaivém que o perturba
na sua intensa regularidade. Freia o próprio corpo, alto, magro, esguio. Um atleta
na sua nudez de Apolo. Ou de Adônis. Os cabelos pretos recebem as mãos do homem
em um gesto de afago ou de impaciência. Penteia-os para trás, evitando que a
mecha cubra-lhe a testa ou o olho esquerdo. É tempo de mirar e nada desvirtuará
o propósito.
A mulher dorme. E pouco sabe da
consciência do sono. Ela se entrega à letargia de um possível cansaço. Um pingo
de suor escorre-lhe do pescoço, desce lentamente até atingir o ventre ofegante.
E quase em evaporação, o pingo se acomoda na pequena reentrância da cintura.
Exibe-se involuntariamente a mulher que o homem vê. Não há resistência no corpo exposto, um corpo
que há pouco foi tocado, amado, extenuado.
Dois corpos. Os amantes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário