Fátima Quintas
Gosto de poesia. Considero-a o ponto alto da literatura, paroxismo da palavra, o resultado de um esforço enorme de sensibilidade. São inúmeros os poetas da minha preferência. Não ouso enumerá-los, cometeria sérias omissões. Hoje, todavia, debruço-me sobre Carlos Drummond de Andrade; vejo o mundo através das suas lentes. Começo com dois versos lapidares: “E cada instante é diferente, e cada/ homem é diferente, e somos todos iguais”. Não preciso dizer mais nada, qualquer palavra sobra, excede-se, o artigo deveria terminar aqui. Já há elementos simbólicos suficientes para a reflexão. Ser igual na diferença corresponde a um dos mistérios da vida ou, pelo menos, ao grande enigma que nos rodeia. Diverso e uno. Igual.
E não importa o lugar. Aqui ou alhures, as dúvidas e as hesitações se assemelham. Mudam tão-somente as reações: ora de um jeito, ora de outro; no fundo, a mesma disposição de um sentir que se mimetiza à humanidade. Drummond atinge a todos sem pedir licença. Vai tecendo o novelo da existência à sombra de metáforas que o eternizam. “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser “gauche” na vida”. Quantas vezes sou “gauche” na vida ou me sinto “gauche” nos momentos estranhos a mim. Não consigo acompanhar a intensidade ou a morosidade do caminho. Ando por outras veredas e me atraso no ponto de chegada. Encalho em portos errados, quero fugir, não saio do lugar. Por fim, vou e me deparo com fantasmas que eu própria criei. Então, aguardo que destino tomar. “O bonde passa cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./ Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração./ Porém meus olhos/ não perguntam nada”.
Há gentes e gentes e gentes a ir e vir, ninguém me conhece. Misturo-me à população numerosa, tantos rostos me cercam. De todos os lados, vejo-os e acabo não vendo ninguém. Os olhos não perguntam, choram. Há uma onda flutuante que me aflige. Sigo quase sempre na contramão. E percebo-me à margem de um mundo que se modifica a galope, independente do meu desejo — prossegue soberano, numa inconteste autonomia, alheio a pulsões individuais. Que todos se tornem peregrinos de uma mesma multidão. Essa é a ordem vigente. Os que se afastam da poderosa engrenagem são estranhos à dinâmica do processo. Tenho consciência de que sou “gauche” na vida.
Ah”, Drummond, como encontro em seus versos acalanto para o meu desconforto. “Em dois milhões de habitantes,/ quantas mulheres prováveis/interrogam-se no espelho/medindo o tempo perdido/até que venha a manhã/ trazer leite jornal e calma”. O espelho me fala o que não gostaria de ouvir. A face se transformou e o tempo continua a girar, incólume, arrogante, um ditador que me mortifica a cada instante na sua linguagem irreversível. O tempo perdido me aflige, não ouso recuperá-lo, quão difícil detê-lo na angústia da cronologia!
Aguardo o leite e o jornal e a calma que vem depois. O jornal chega, o leite, compro-o na padaria mais próxima; a manhã, tão restauradora, se apequena em compromissos inadiáveis. Mas a rotina me acalma, sim, me agasalha num ritmo que gosto, a garantir o sossego do dia. Ninguém ama a rotina mais do que eu. Sou um gato retornando ao mesmo canto.
“Tenho saudade de mim mesmo,/saudade sob aparência de remorso,/de tanto que não fui, a sós, a esmo,/ e de minha alta ausência em meu redor.” O poeta se solidariza com essa saudade que me persegue. Deixei para trás um punhado de coisas que poderia ter feito. Daí o remorso de ver que as horas deveriam ter sido preenchidas com o sonho, nada de vácuos nem hiatos a sustar o desejo. Não se deve estancar a cadência da alma; urge que a pulsão interior comande os sentimentos.
Sou “gauche” na vida, as minhas pegadas não se apressam entre pernas ávidas de algum querer desconhecido, o espelho reflete devaneios perdidos, por isso, tenho saudade de mim mesma sob a aparência de remorso, mas o poeta aplaca a perigosa travessia do ofício de viver: afinal, somos todos iguais.
Professora,
ResponderExcluirMuito bom a senhora nesse mundo do blog! Permita-me segui-la e indicá-la no blog que cultivo há um tempinho. Na verdade é um lugar onde tento (com uns amigos) amestrar a minha prolixidade, desenhando e escrevendo pequenos textos. Uma boa diversão, sem qualquer compromisso.
Um abraço de chegada!
POR FAVOR ASSIM TÁ DEMAIS.
ResponderExcluirEu não consegui deixar de conferir seu blog...
ResponderExcluirEncontrei o endereço no jornal do comercio, data de hj! Achei seu artigo e suas palavras... otimas. Quem me dera um dia ser capaz de tanto! Deixo humildemente meu blog aqui, quem sabe tenho algum talento, sua visita me honraria: www.ecoardaspalavras.blogspot.com!