Como diz Drummond “Perdi
o bonde e a esperança./ Volto pálida para casa”. Mas não posso deixar de bradar
o meu desespero. Há algo de estranho entre os homens. Estarei sozinha na
explosão interior? Creio que não. Olho o calendário, o dia, o mês, o ano.
Estamos em 2014, a população da terra alcança o patamar dos sete bilhões, a
rotina rebenta num frenesi insuportável, o chão treme ao impacto de tantas
pegadas, “O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas,/ Para
que tantas pernas, meu Deus, pergunta meu coração.”
O mundo se torna cada
vez mais superficial, alheio aos apelos humanitários: valores inexistem,
sentimentos se destroçam, honestidade se discute, a ética se adjetiva, cortesias
desaparecem, o imediatismo impera... Olhar para o lado e avistar o outro é
coisa do passado; importa a celeridade do ver e não enxergar. E a roleta da
penúria moral se acentua, à medida que a vulgaridade usurpa o espaço da
reflexão. Refletir para quê?, se tudo está à mostra e à venda. Nada custa caro,
a honra, a integridade, a decência têm preços sem inflação. A sociedade de hoje
curva-se à venalidade. O que é o bem, o que é o mal? Hanna Arendt já advertia
para a banalização do mal. Viver simboliza acumular vitórias e mais vitórias,
até a exaustão do sucesso. Tenho medo da mentalidade vigente e recuo diante da
multidão embotada por princípios distorcidos.
O
ato de pensar se afasta da humanidade. Prevalece a ganância por uma escalada ao
poder. A visão materialista se apossa das pessoas e “ter” corresponde à glória
do pódio. “Ter” e não “Ser”. A patologia social embrenha-se nos cantos e
recantos mais longínquos; pior, aqueles que se recusam a participar do
redemoinho da insensatez sofrem a exclusão dos ingênuos. A mediocridade tem
parentesco próximo à soberba, ambas andam de mãos dadas, a alfinetar a
jactância com malditas persuasões. Ora, se nada é duradouro, por que perder
tempo com ponderações mais profundas? Ludibriar faz parte desse palco
histriônico: luzes, coreografias, matizes berrantes auxiliam a anestesia social;
embriagada pelo individualismo e pela insensata altivez, a humanidade caminha.
O
capitalismo avança com suas garras sedutoras. E o mundo gira; mas tem girado em
torno de um mesmo tema: a banalização. Com exceções, evidentemente. A juventude
se enreda em altos decibéis, e cada acorde estrondoso consigna o atordoamento
de um grupo devotado à mediocridade. Sair de casa é enfrentar o bulício de
vozes, de carros que buzinam, vitimados pelo caos do trânsito; de restaurantes
inebriados por músicas estridentes; de rádios ligados em volumes inaceitáveis;
de vitrines reluzentes, a fascinar olhos desatentos... O que se passa?
O
Recife parece ter perdido o seu ar heráldico para se deixar emaranhar numa rede
de insignificâncias. A elegância, a educação, a discrição, a gentileza, a
valorização do erudito, sem esquecer do popular, a magnanimidade da
sabedoria... são lembranças em
extinção. E, no entanto, temos uma tradição digna de
reverências. Mas, não. Pichar muros, ignorar ou ultrajar monumentos,
desconsiderar os mais velhos, abandonar rituais, desprezar o patrimônio moral e
material equivalem a ser moderno, a estar na ordem do dia, a endossar a fileira
dos que aplaudem a decadência da cultura. Oswald Spengler já há muito anunciava
tal abismo. Não, não é possível cruzar os braços; as coisas não vão bem.
Enquanto a ordem familiar e social não se conscientizar da sua própria ruína,
nada poderá ser feito.
Sei
que sou considerada antiga, apegada a valores tradicionais, vencida por sonhos
quase delirantes; mesmo assim, uso a palavra como único meio de alerta, palavra
que também se encontra enfraquecida, anêmica, quase agônica. Tenho certeza,
entretanto, que ainda é hora de repetir Chesterton: “Não apenas estamos no
mesmo barco, como todos sentimos enjoo”.
Fátima Quintas é presidente da
Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br
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