A gente vai, volta, faz pesquisas e mudanças, mas sempre redescobre
a força das raízes e da infância. É inútil o artista querer fugir à evidência
dessa realidade intemporal. (...) Jundiá permanece como a capital da minha
vida, em Paris ou onde quer que me encontre (Cícero Dias).
No município de Escada, a 53 quilômetros do Recife, um menino trelava no canavial, deliciando-se com a cor vermelha do massapê oleoso e pegajento, com o amarelo-ouro de um sol que não se resignava à sombra do crepúsculo, com o brilho de um verde que se espalhava por um extenso canavial. Dessas cores tão tropicais, vívidas, estridentes — ao contrário de Gaughin que precisou “exilar-se” na Tailândia para sentir a pureza cromática —, Cícero Dias absorveu precocemente, ainda nos verdes anos de criancice, a sua identidade pictórica, poética, humanística. E jamais negou o pacto selado na infância: uma aliança que, como todas as precoces alianças, transbordavam de si mesmas — o verde do canavial em conluio com o verde do mar. Um e outro em perfeita sintonia. O mesmo verde amado-amante de Federico García Lorca — verde que te quiero verde.
Tudo aconteceu em Jundiá, nome
indígena que significa peixe de água doce — yundi = a espinha e á = cabeça. Os
malabarismos infantis o marcaram de forma indelével: fábulas, histórias
mágicas, mentes povoadas por chamas mitológicas; moças bonitas com seu pisar
descalço, pernas a receber o húmus da terra bem colado à epiderme; cantigas em
refrão a ensinar desde então os traquejos da vida. Do núcleo primevo emanaram
as fantasias de um pintor que se notabilizou nos seus inícios (1929) pelo
carismático painel intitulado Eu vi o mundo... Ele começava no Recife.
Esta a verdade ontológica de Cícero Dias. E de todos nós. O mundo começa e
termina nas idéias lendárias da origem. De Jundiá, a menor aldeia do universo,
brotavam os passos para fronteiras outras.
O mundo nasce onde a gênese se
firma, não importa se no município de Escada ou nas frenéticas Avenidas de uma
Paris carregada de luz e de vanguardismos. Cícero nunca desprezou o sentimento
de artista engajado nas causas sociais — justiça e liberdade. O jeito de menino
aperfeiçoou-lhe a capacidade intuitiva de quem está disposto a conviver com o
humano como parte integrante dessa humanidade. E as reminiscências lhe serviram
de calço à estrutura de uma personalidade impregnada de cor e forma como
simbolismo maior da existência. O seu universo sensorial revela-se na estética
da emoção e na beleza da arte, por vezes até impactante — afinal, a arte não
tem pecados; nele, as manifestações interiores desfilavam na firmeza das
tintas, um dégradé que lhe enchia os olhos e a alma, ou nos recursos de uma
paisagem que se transfigurasse nas sendas imberbes da meninice. De Jundiá para
o infinito. De Jundiá para além de si. De Jundiá para a transcendência.
Pintor modernista e regionalista,
adepto aos atavismos, às crendices internalizadas nos desvãos do engenho, não
desprezou as brincadeiras inocentes ali experienciadas, assim como as malícias
de um adolescente que já assegurava a sua identidade em glebas da Mata Sul de
Pernambuco. Aos 13 anos, mudava-se para o Rio de Janeiro, em regime de
internato no Colégio São Bento, sem deixar para trás as recordações de um tempo
germinador. Nada modificava o caráter já formado daquele que caminharia mundo
afora, carregando a saudade da cama de Jundiá, do assoalho feito de
tábuas de madeira-de-lei, das aulas de pintura de tia Angelina. De que
mais necessitava Cícero para compor a luta visionária, as fases inspiratórias,
o destino de menino de engenho?
A sua universalidade advém
justamente de um regionalismo saudável e genuíno. O pluralismo validava um nome
que se inscreveu nos muros de Jundiá alongando-se até Paris, cosmopolita,
celeiro de movimentos literários, musicais, artísticos. Conviveu na intimidade
com Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Ascenso Ferreira e, juntos,
consolidaram respectivamente no ensaio, na prosa, no poema, na pintura a visão
de um ethos representativo do retrato da nordestinidade. A arte, a sua,
emergia do cheiro de melaço do amplo canavial para ganhar a dimensão universal.
E a força da sua expansividade
remonta aos sonhos preservados nos escaninhos da infância. As lembranças
alimentaram o imaginário, tornando-o “um escravo da memória” ao transformar o
passado em imagens significativas e metafóricas, pintura efervescente com saibo
de açúcar e de doce, ao ponto, de jaca, ou com a inocência de mulheres
entregues à sensualidade do sol tropical. O verde da cana a acasalar-se com o
verde do mar — o mar do Recife, esse, sim, verde, verdíssimo — para transbordar
no pincel inquieto de um homem enredado nos ícones fantasmáticos e dionisíacos
dos tempos dos bangüês.
Cícero Dias, o pintor do verde do
canavial, do verde do mar de sua terra e “do céu mais alto do mundo”, o do
Recife.
Fátima Quintas é
da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br
Imagem retirada do site: http://wwwescadaresgatandonossahistoria.blogspot.com.br/2010/03/casa-grande-do-engenho-jundia.html
Imagem retirada do site: http://wwwescadaresgatandonossahistoria.blogspot.com.br/2010/03/casa-grande-do-engenho-jundia.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário