Da varanda do meu
prédio, vejo o mundo se agitando. As árvores dos fundos de quintal neutralizam
o som dos carros; criam um hiato entre o que se passa do lado de lá e o que se
passa do lado de cá — linha divisória a formar um meio círculo, como se o meu
mundo se dividisse entre a minha intimidade e a explosão de ruídos que se
espalham no espaço público. Entre a casa e a rua existem insondáveis mistérios.
Tenho
dito sempre que gosto do recôndito, daquele cantinho que é meu, das reflexões
do quarto de estudo, dos livros que leio e releio, de tudo que diz respeito a
minha pessoalidade. Sou um ser latejante de emoções, não receio a lágrima que
desce do rosto, denunciadora do meu temperamento introspectivo. O lado de lá
reflete um outro cenário, pleno de atores circenses: drama e comicidade
convergem para um mesmo espetáculo. E as cortinas estão sempre abertas para uma
plateia anônima — as máscaras reinam. Do lado de cá, o rosto desnudo se mostra
ao espelho. Não adianta esconder as rugas visíveis, tanto quanto a expressão de
desencanto diante de esdrúxulas contradições.
Sou
ambígua, carrego oposições, faço questão de construir-me “entre” alguma coisa. Sou
“entre”. Será que estou enganada? Nunca duvidei das incertezas que me
alimentam. Sei pouco e sou pouco, isso me basta. Opto pela humildade dos
anacoretas em contraste com a arrogância dos poderosos. Somos tão pequeninos
que poucos se satisfazem com a moderada ambição; querem alcançar o pico da
montanha sem antes escalá-la. No Brasil, a ânsia de poder atinge níveis
incalculáveis: mente-se, tripudia-se, engana-se, contanto que o suposto domínio
sobre os outros venha a prevalecer. O humanismo desce ladeira abaixo, conceito
desgastado, fora de época, ridículo. Importa esmagar o outro, exaltar o status,
enaltecer falsas competências: tudo isso em nome das ressonâncias sociais que
bajulam os mais fortes e esbofeteiam os mais fracos. O Brasil carece de
decência, do mínimo de vergonha, de posturas corajosas e dignificantes.
Triste
do homem que não é capaz de existir por inteiro, que se deixa fragmentar sob o
jugo de um poder assentado no favorecimento. Nada melhor que a metáfora de
Drummond para exprimir um sentimento complexo e quase sempre tripudiado: “Os
cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara./Sem uso,/ela nos espia do
aparador”. E mais adiante revela: “Este é tempo de partido,/tempo de homens partidos./Em vão percorremos
volumes,/viajamos e nos colorimos./A hora pressentida esmigalha-se em pó na
rua./Os homens pedem carne./Fogo./ Sapatos./As leis não bastam./ Os lírios não
nascem/ da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se/ na pedra”.
Homens
partidos não conclamam a paz, destroem-se em inúteis retalhos. Amam o poder
acima de todas as coisas, porque são tão efêmeros que não têm tempo de se
perceberem humanos. Os relógios parados continuam girando para aqueles que
entendem a vida na sua finitude. Homens partidos nada edificam, servem apenas
para fomentar a discórdia, dilatar a própria raiva no seu ego minguado, homens
sem norte, apoiados em pedestais de papelão. Ao mínimo descuido, tombarão do
seu último degrau. Homens partidos fenecem precocemente e em pó hão de
desaparecer.
Os
poetas não calam, os seus símbolos são mais fortes, transcendem a miséria do
poder, para alçar a eternidade das palavras — tão somente das palavras. A única
eternidade possível. Tudo mais é passageiro e miúdo. O poeta pereniza-se na
ênfase do dito. O seu poder se crava na alma até daqueles mais insensíveis.
E
todas essas conexões me chegaram livremente. Ou talvez dos versos de Drummond:
“O bonde passa cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./Para que tanta
perna, meu Deus, pergunta meu coração./Porém meus olhos/não perguntam nada”.
Continuo
na varanda, esmagada por um Brasil agonizante. E peço licença a mais um poeta,
Daniel Lima: “Sufocarei se não gritar agora./Deixa, Senhor, que eu blasfeme/na
danação desta hora./Preciso ser maldito/para sentir-me salvo./Se permitires que
eu blasfeme agora,/verás, Senhor, que essa blasfêmia/é apenas/um jeito de oração
de amor magoado”.
Fátima Quintas é da Academia
Pernambucana de Letras, E-mail:fquintas84@terra.com.br
Cheguei para ver. ...
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