Os retratos me tocam.Chego a ter uma
certa devoção pelos álbuns de família. Vejo-os não somente com os olhos, mas
com todos os sentidos. As mãos apalpam rostos que não conheci; o olfato aspira
a perfumes antigos que me inebriam; ouço vozes calorosas de tios, tias, avôs,
avós, bisavós, bisavôs, parentes distantes com histórias belíssimas a contar.
Fortuna de lembranças;relicário sagrado;tesouro de mim mesma.
Pensar que os álbuns de família
estavam sempre expostos à mesa da sala de estar nos tempos patriarcais e
semipatriarcais! Todos a eles se achegavam, sortilégio que não faltava em
nenhuma casa-grande. De pronto, os entes queridos ganhavam o timbre da
eternidade. Assim, passei a conhecer muito alémdaquilo que pude assistir.
Se um dia o rosto existiu, por que
não amá-lo através do esboço retratado? Sou uma privilegiada. Cruzo caminhos que
conduzem aimaginação para outras vivências. E mais ainda: as histórias que
irrompem dos retratos são histórias verdadeiras, retiradas de documentos
fidedignos, garimpadas em velhos papéis, cheios de bolor, porém, capazes de
oferecer detalhes mais cativantes que qualquer enredo ficcional. O que é a vida
senão uma tentativa de copiar desejos espalhados em lugares anônimos,
enigmáticos, ainda que tão próximos? Qualquer narrativa se constrói à guisa da
soma de tempos que sequer consigo abstrair num conjunto fechado. Convivo com o
que foi, nem por isso me sinto mais vulnerável pelo calendário extinto. O
passado é mais consistente do que a efemeridade do instante. Existiu
efetivamente e me permite debulhá-lo à minha maneira. Os contornos mudam nas
reviviscências. A depender do meu estado de espírito, lanço a isca em alto mar
ou retraio o anzol com medo da tempestade. Não preciso de grandes tormentas. As
ondas mais altas são suficientes, em alguns momentos, para me assustarem,
fazendo-me recuar na roda dos desafios.
Passo as páginas, uma a uma, do álbum
sempre amado. O retrato me comunica planos evocativos: penteados, roupas,
adornos,chapéus elegantes; portes aristocráticos, vestidos colados,
sobrancelhas grossas, mais adiante adelgaçadas; blusas com babados, mangas
compridas, decotes ousados em traje de gala; veludos, organzas, saías
plissadas, algumas godês, outras levemente ajustadas, a alongar o corpo;
paletós bem cortados, bengalas, bigodes, barbas zeladas com esmero, pince-nez;
crianças, homens, mulheres...
A textura em preto e branco explode.
A imagem é bem mais forte que o simples papel. E há o implícito revelando-se devagar:
toco na pele, na carne, na alma da gente que fala, que afaga, que repreende,
que acarinha, que repassa liturgiasjá enevoadas. Nada falta neste banquete nostálgico. Ele é
tão meu que confesso a vontade incontrolável de preservá-lo, de retê-lo
egoisticamente.Trago o pudor de quem sabe avaliar o inventário da vida. Eis-me
diante do espetáculo dos que me aplaudiram em mera transcendência geracional. Os
rostos me sacolejam. Os minutos exalam sentimentos de perda. Mas, o que seria
de mim sem essa felicidade que tanto vivi? A saudade de hoje só tem razão de
ser pela felicidade de ontem. Aliás, só conheço uma ou outra porque deixei de
tê-las algum dia. A plenitude da presença impõe emoções irreversíveis, lá
adiante, quando o vazio se instala.
O tempo repousa plácido nas minhas
mãos. Deixo-me observar pelos olhos dos que me veem. Os risos e as lágrimas
apegam-se à memória como se a exposição de faces saltasse das páginas que já
não são páginas, mas pedaços de mim. Não sei onde começa
o presente e nem onde termina o passado. Ainda bem que tenho a vivaz
consciência do ser, eu, todos os tempos em um mesmo tempo.
O álbum de família permanece aberto.
Minhas mãos tremem. Vejo e vivo sentimentos que são heranças imemoriais de uma
história que, seguramente, é a minha própria história.
Fátima Quintas é membro da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br
Leio suas crônicas no JC toda quarta, mas agora com acesso ao blog, vou vê todos os dias suas maravilhosas ideias transcendentes.
ResponderExcluirQuerida Fátima, que bom poder ler suas crônicas aqui no blog. Lendo "Álbum de Família", para mim, foi um passeio nas imagens que tenho aqui em casa, das muitas fotografias antigas que cuidadosamente guardo e tento preservar. Preservar e também investigar o passado, as histórias das pessoas, tentando entender um pouco como foi a vida dos meus antepassados e dos seus amigos e conhecidos. Um beijo com carinho, Eleonora Saldanha-Marston 13/Março/2017
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