Minha avó paterna, Laura
Pacheco Quintas, costumava dizer: “Boa romaria faz quem na sua casa está em
paz”. E de tanto repetir a frase, absorveu-a de tal maneira que cumpriu na
íntegra a sua mensagem. Raramente saía. Ou melhor: só saía para ir ao médico.
Dias, meses, anos, a avó Laura se refugiava no claustro doméstico. Falava
muito, reclamava da modernidade à época, vigiava os vizinhos com assídua
atenção;era uma mulher voltada para a monotonia dos hábitos. O mundo reduzia-se
à sua casa conjugada, de vila, em Casa Amarela. Arguia-se de uma enorme
dificuldade de externar sentimentos — monocórdia na dinâmica familiar. Aliás,
uma dinâmica que se reprisava todos os dias, sem surpresas ou novidades, salvo os
acontecimentos imponderáveis;não me lembro de comemorações, tampouco de dias
incomuns, o cotidiano ali se repetia como um disco de vinil arranhado, cuja
agulha não muda de faixa.
Não
fora o avô paterno, Gabriel Soares Quintas, personalidade extremamente
original, a estrutura doméstica se quedaria em algo tão linear que só a morte
poderia rachar o bloco granítico. E assim foi. A avó avocou-se de um domínio
férreo: nada de variações, os costumes perpetravam liturgias eternizadas.O dia
começava com o canto do galo.Auroras não traziam prenúncios de novas horas; sim
a continuação de um tempo estático, onde somente o relógio, o belo relógio tipo
oito, massacrava os ouvidos, badalando de quinze em quinze minutos, como se a cronologia
anunciasse a finitude nos seus quartos de hora. Representava um som tumular do
qual nunca consegui me livrar. Lembro-me que quando lá chegava pedia para
desligá-lo. O avô tentava, mas acabava por me convencer a aceitar o rimbombo
tonitruante; surdo, completamente surdo, não o abalavam os sons externos; seus
ruídos emergiam de dentro.
E
a avó Laura reverberava as mesmas frases, os mesmos monólogos, as mesmas
reclamações: rosto redondo, cabelos ralos, lisos, lábios finos, estatura baixa,
mãos pequeninas, amava as percussões ritmadas; não gostava de ler, não gostava
de cozinhar, não gostava de arrumar a casa, não gostava de ouvir rádio, não gostava
de música; ela, a avó, deleitava-se com a vida congelada. Os aposentos da pequena
casa distribuíam-se entre duas salas e três quartos, uma cozinha mínima,
dependência de empregada e um modesto jardim, que logo foi acimentado para
poupar serviços a mais. Um jardim acimentado..., assim como a casa, estagnada
em anódinos murmúrios..., assim como o vazio de emoções.
Às
onze horas em ponto, o almoço à mesa, toalha branca de damasco, louça simples,
talheres comuns. A refeição transcorria em silêncio. A tarde, quase sempre
morna, denunciava um ir e vir pelos aposentos. E “à las cinco de la tarde”, à
Federico García Lorca, a ceia posta: leite, café, pão, queijo e chá de
camomila. E o relógio, anunciando a passagem do tempo.
Ao
cair do crepúsculo, os postigos da porta da frente se abriam discretamente —
minha avó ia assuntar a rua; tomava conta do mundo pelas brechas daquela porta
quase sagrada, por simbolizar um meio de enxergar para além da imobilidade
interna.
Relógio a
tiquetaquear vinte horas, momento em que a avó Laura se deitava — ar
petrificado, quietude imposta, paralisia dos móveis. O avô Gabriel, com seu
jeito transgressor, lia à luz do abajur. Chamava-me para perto dele. E a vida então
começava sob o embalo dos quartos de hora.
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