O homem conformado com
o mundo não está pronto para escrever. A resignação paralisa, impede qualquer
movimento. É preciso um mínimo de inquietação para deixar-se explodir em desabafos.
As entrelinhas de uma escrita, com silêncios prolongados, fantasmas implícitos,
ocultas sugestões, derrapam em um cenário que se modula à maneira de cada um.
Não há como fugir desse jogo tão instigante que se chama literatura. Tudo isso
me vem à mente a partir do excelente tema, rico de complexidade e beleza,
escolhido pela Fliporto 2013: “A Literatura é um jogo”. Assim como a vida
também o é. Quantas vezes a vida surpreende mais que a literatura? Somos reféns
de um destino ignorado:“duelo” que se faz intrigante na
medida em que bifurca o placar — vitoriosos ou derrotados. Destino é uma
palavra perigosa, implica em tantas conotações que tenho receio de usá-la. Mas
ela existe e aponta inúmeros caminhos que confundem a escolha. Nem sempre temos
consciência de qual jogo jogar. Então, a literatura abriga os desassossegados,
os apreensivos, os impacientes — embate a exigir emoções e sentimentos.
E a disputa se inicia
quando o “eu” agrupa vários “eus” em uma partida nem sempre harmoniosa. O
conflito dá ensejo à roleta do pensamento. Refletir decorre de uma dúvida
atormentante. A inspiração corresponde à pulsão de vida; sem ela o desejo
desaparece e o abismo do vazio aflora. Nem sempre estamos inspirados para
preencher uma folha de papel em branco, mas aliados, sim, à máquina propulsora
de evocações;são as reminiscências, mexidas e remexidas, que tecem o sonho,
ressignificando-o em símbolos e metáforas. O jogo resulta dos próprios desencontros.
E o tempo é a matéria prima desse jogo.
Escrever
é desabrochar-se em signos, utilizando a palavra como meio libertador. O drama
humano reclama por portas de saída. A angústia favorece a compreensão da
existência, delegando à literatura o ato de exorcizar as agruras da alma. Há
uma voz que fala através da letra: as exclamações despontam;as interrogações,
também. E tudo parece desaguar numa pergunta que jamais será respondida.
Impossível decifrar o mistério da existência! Que os vulcões interiores entrem
em erupção; somente assim a humanidade poderá caminhar na direção do
incognoscível. Cada palavra desenhada expressa o que lá de dentro emerge, dando
forma a uma peleja que convive com o ontológico. A literatura é feita de
flashes da vida;por efeito, como fugir desse embate constante e imprevisível? O
jogo persiste.
No
túnel do dizer, a cronologia tem forte representação. Lembranças de infância
acorrem como se a nossa história retornasse ao passado, tempo realmente sólido
que nos fortalece. Joaquim Nabuco já afirmava que a infância é a fonte da nossa
ebulição. E Proust construiu sua obra em base de memórias aparentemente
perdidas, porém reencontradas. A memória consiste no fermento da escrita; dela
brota o processo criativo. Sem receio de errar, oferto à memória o elemento
desencadeador de toda narrativa. Impossível imaginar que semeamos do nada. As
anterioridades, já advertia Ernesto Sabato, são transbordamentos de um eu-vivente.
A memória tem o poder cumulativo, nela agregam-se várias caixinhas, umas mais
recentes, outras distanciadas, além daquelas arcaicas. A soma dos séculos que
em mim habitam provoca um redemoinho de épocas que servem de alento ao ato de
devanear. O encadeamento acontece tal qual elo de sustentação. E a batalha pede
armistício, reivindica a paz que deriva do fenômeno da palavra.
A
Literatura é um jogo entre o homem, o tempo, a memória e a existência. Um jogo
que tem árbitro implacável e regras nem sempre conhecidas. Não adianta camuflar
as pedras da contenda, porque prevalecerá sempre a contingência do humano.
Continuar em pleno jogo é a única forma de entender a literatura.
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