terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Pedra, Pedro, Petra

Fátima Quintas





Ah! Se as pedras pudessem escrever versos, que diriam elas? Que a natureza as rodeia e nem sequer as percebe ou que seu caráter granítico as impede de ser vistas com ternura. E, no entanto, Adélia Prado diz que quando olha uma pedra e a vê pedra não está na hora de escrever. As pedras significam algo estático, parado, um obstáculo. Os versos de Drummond são famosos: "No meio do caminho tinha uma pedra/ tinha uma pedra no meio do caminho/ tinha uma pedra/ no meio do caminho tinha uma pedra". Pedra pode ser topada; pedra pode ser empecilho; pedra pode ser símbolo daquilo que não conseguimos fazer. E a pedra torna-se um quartzo não lapidado, muralha que se agiganta na estrada, desejo interrompido porque há uma pedra no caminho.

Falo tudo isso porque nos jardins — mais precisamente no fundo do quintal — da casa da Rua Neto de Mendonça, onde morei por toda uma vida de infância e adolescência, havia uma pedra, relativamente grande, portanto, impossível de ser removida. Nela sentava-me para descansar, espiava-a no seu jeito inflexível, e não sei a razão de tê-la transformado em substância prazerosa que me concedia descanso e me estimulava a refletir sobre as tantas pedras que a rotina vai produzindo no curso da existência. Àquela pedra era diferente; trazia a placidez de quem nada fala, mas sabe ouvir. Um cantinho só meu, a recolher as confissões que ali depositei. Quantas vezes corri para esconder-me na pedra que ninguém apreciava! Somente eu a enxergava. E era arredondada, com a largueza suficiente para defini-la majestática, suntuosa na forma e no tamanho.

No inverno, a superfície lodosa clamava por limpeza; limpava-a; a expectativa era de tê-la sempre higienizada e, sobretudo, no mesmo lugar. Nunca me faltou a pedra do quintal de antigamente. A certeza de sabê-la ao término dos canteiros já me deixava feliz. Tudo mudava: as rosas, as begônias, as hortênsias, as papoulas; as heras também. Ora cresciam; ora se permitiam mirrar por falta d’água ou por desleixo de quem as cuidava; ora percebia-se completarem o seu ciclo de vida. A natureza se metamorfoseava à sombra da lua ou à luz do sol, às vezes escandalosamente florida, frondosa, pétalas abertas, troncos nodosos, verticais. Cada pedaço de terra bradava suas sementes. A pedra, não; permanecia igual, exatamente igual desde o primeiro encontro até o desmonte do terreno. Estranhamente a pedra é a lembrança mais estável desse fundo de quintal tão versátil.

E a concepção de pedra em mim adquiriu um novo significado: misto de abstração e materialidade. Pedra que pode ser Pedro ou Petra. Que pode ser algo consistente, rígido, sólido, que não se desmancha no ar, perdoe-me Karl Mark. Encontro no Evangelista Mateus inúmeras recorrências ao termo — “Disse-lhes então Jesus: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular.” Transcrevo outro versículo, também de Mateus — “Jesus respondeu-lhe: Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela”.

Existem tantas formas de metaforizar a pedra! Na minha infância ela se dogmatizou em gruta silenciosa sobre a qual construí ingênuos altares. Na juventude, a ela acorri como refúgio de momentos de inquietação. Nas andanças por Casa Forte, cada tropeço a traz à tona em imagens as mais variadas. No Evangelho, a sua solidez eleva-a à imaterialidade da transcendência. Pedra angular. Pedra edificante. Pedra sobre pedra. Não tardo a descobrir, e nunca é tarde demais para descobrir, a fragilidade dos conceitos. A toda hora me renovo na busca do que não sei ou do que não quero saber. Melhor imaginar as inúmeras circunstâncias da vida e acatar a vigilância de Adélia Prado; afinal uma pedra bem pode ser uma rosa, basta apenas fazer uso do exercício da transfiguração.
Aos trinta anos, na precoce maturidade, depois de muito tempo sem espiar a pedra do jardim da Rua Neto de Mendonça, voltei ao seu lugar; lá estava, imponente, intocada, então coberta pelos imbés, plantados posteriormente. Já não era pedra; eram folhas trançadas, convidando-me a escrever.

Pedra, Pedro, Petra, o que há num nome?

Os poetas, um poeta

Fátima Quintas






A poesia representa o clímax da literatura. Nela encontramos as metáforas da vida e toda a simbologia do que se vê e do que não se vê. O poeta transfigura a realidade, tornando-a suportável à sensibilidade dos homens. É preciso versejar as durezas da rotina para acreditar que a ordem do real escapa aos nossos olhos; então, os poemas adquirem a verdade que se deseja imaginar. Que o sonho vença a inexcedível concretude. E só. Estou exausta dos modelos pré-fabricados, assim como Manuel Bandeira estava farto dos purismos limitantes.

A palavra pode tudo, desde nomear para dar sentido aos objetos até enganar os fantasmas, mistificando-os. Poetas, leio-os todos os dias. Não consigo afastar-me dos seus mistérios. Gosto de percebê-los driblando a vida ou de senti-los na catarse intensa. E deparo-me com “Desencanto” de Manuel Bandeira: “Eu faço versos como quem chora/ De desalento... de desencanto.../ Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto”. Não, Bandeira, não fecharei o livro. Necessito folheá-lo para apaziguar as intermitências da alma. Vou em frente. Sei que a tuberculose o atormentou, encontro no acervo epistolar da Fundação Gilberto Freyre cartas e mais cartas endereçadas a Gilberto Freyre, falando da doença e prevendo uma morte precoce, bem perto, à porta. E, no entanto, viveu oitenta e dois anos (1886-1968), sempre afligido pelo espectro da enfermidade. Em termas especiais, cidades de clima seco, recomendações médicas e a “indesejada das gentes” rondando, rondando, rondando... E, você, Manuel Bandeira, a gritar as pulsões em versos belíssimos. A dor o impulsionava a jorros intimistas. “A vida é um milagre./ Cada flor,/ Com sua forma, sua cor, seu aroma,/ Cada flor é um milagre”.

A ansiedade da escrita lhe roubava as horas e não é à toa que o seu primeiro livro (1917) tenha recebido o título de “A Cinza das Horas” — impresso nas oficinas do Jornal do Commercio, 200 exemplares. Escrito, conforme disse, “para iludir o sentimento de vazia inutilidade. Este só começou a se dissipar quando fui tomando consciência das ações dos meus versos sobre amigos e principalmente sobre desconhecidos. Uma tarde voltei para a casa seriamente impressionado de ter ouvido, na livraria José Olympio, Rachel de Queiroz me dizer: Você não sabe o que a sua poesia representa para nós”. O tempo chamuscado de cinzas, o seu. Mas pleno de criatividade, como se a descoberta das coisas lhe trouxesse o ânimo imprescindível à trajetória de algum futuro. “Fui menino tuberculoso, nada sentimental. A doença, porém tornara-me paciente, ensinara-me a humildade, o que estava muito certo. Infelizmente gerou também em mim um sentimentalão”. Um sentimentalão que se exprimiu poeticamente, permitindo conduzir os dias, contados um a um, à maneira de Nietzsche, quando alertava que cada minuto deve ser transformado numa obra de arte. Aos grandes homens a doença não os apequena, pelo contrário, engrandece-os: Manuel Bandeira, Nietzsche, Max Weber, Freud, Virgínia Woolf (com eterna depressão, a ponto de suicidar-se)...

Em março de 1933 se viu forçado a abandonar a residência à Rua do Curvelo, onde morou entre 1920 e 1933, apegando-se ao seu canto felinamente, um gato recolhido ao aconchego dos prazeres mais recônditos. Mudou-se para a Rua Morais e Vale, no coração da Lapa. Não se acostumou à nova paisagem, ocasião em que escreveu o belo poema “O Beco”, a lamentar a convivência do refúgio anterior: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?/ — O que eu vejo é o beco”. E quantos becos nos deparamos ao longo da existência!?

A poesia de Manuel Bandeira nasce de um sofrimento diário. Conhecia o abismo bem próximo, aos seus pés, bastava uma pequena escorregadela, e pronto. Por isso tinha pressa de apreender o mundo, apreendê-lo através de emoções que o inspiravam, e dele exigiam a urgência da escrita: “Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente”. A morte nunca o ceifou. Manuel Bandeira, eterno, eternizante, eternamente Manuel Bandeira.