Saberei definir-me

Fátima Quintas

Que direi de mim se me perguntarem quem sou? Quão difícil a resposta! Permito-me confissões desconexas, pensamentos soltos, jorros incontroláveis, mas tudo isso à sombra de uma aguda espontaneidade. E a imaginação flui num desejo incontrolável de transformar a palavra em círios de eternidade, de diluir-se em letras como se a marca da escrita representasse o ponto original da existência, a pedra fundamental de que faço uso, instrumento indispensável à vida, oxigênio puro, ar conveniente à respiração. A escrita me desafiando, minuto a minuto, uma espécie de chamamento do qual não consigo me desvencilhar. Primeiro, as sílabas; depois, os vocábulos; e a idéia se fazendo matéria-viva. Devaneio incendiário ou retraído, a faísca da criatividade navegando em agudas cintilações — o sim e o não. Mãos de artesã em trabalho lento, tijolo a tijolo, a argamassa ao meio, o pincel indefinido entre cores berrantes e um matizado difuso. Recôndita construção, arquitetura indecisa, destroços, ruínas — a magia do cosmos. Sem preconceitos ou vestígios de intolerância, assumindo os gestos com vontade inabalável, ainda que o corpo frágil aparente hesitação; vendo, ouvindo, tateando e, sobretudo, sentindo: uma mania desarvorada de sentir. Trapezista que se equilibra entre o papel e a navalha, entre os fios de aço e a rede esgarçada, entre o parágrafo para concluir e a alucinação do ponto final.

A vida, latejando nas veias, a fazer-se múltipla, fragmentada, una; ora uma coisa, ora outra, invariavelmente paradoxal, nunca a mesma. Aceitando os desafios, a curva sinuosa do beco, o breu do corredor, mas com medo da palavra dura pronunciada pelo amigo próximo, incapaz de suportar o halo da agressão ou a dor do sentimento vazio. Sabendo perdoar e pedir perdão. Sem mágoa, nunca rancores, menos ainda desafetos. Compreensiva, porém intransigente diante da deslealdade e das falsas aparências. Solene em picadeiros anárquicos, irreverente em cerimônias protocolares, de braços abertos para o amor e para as adiadas e ensandecidas paixões.

Tímida. Com vontade de ser invisível, de fugir para as colinas do Tibet, monja visceral e, no entanto, sujeita às imprevisíveis tempestades, entregue a céu aberto, sozinha, em carne viva. Platéia perdida entre uma multidão de rostos anônimos que se semelham às máscaras da tragédia grega — ao modo de Ésquilo, Sófocles ou Eurípedes. Angustiada e introspectiva, lendo Virginia Woolf e Katherine Mansfield. Albert Camus e Marguerite Yourcenar. Feérica de desencontros interiores e de mudas indagações, quase em delírio por saber-se sangue a correr nas veias sob o impacto de pulsões assimétricas. Mergulhada no intimismo de Clarice Lispector e admitindo que ama mais o que quer do que a si mesma. Uma obstinada no caminho escolhido... sem contudo desviar-se dos perigosos despenhadeiros. Um certo prazer em transitar por estradas incógnitas e por trens em alta velocidade, embora retornando felinamente aos lugares de antes. Loucura? Não. Saudável jogo de incoerências. Sorvendo a poemática de Fernando Pessoa e Florbela Espanca, visitante de Portugal, do Minho ao Algarve, entre vindimas, ventos outonais, tascas noturnas... Dramática, tal qual o fado; como o tango, versátil; sobre o tablado flamenco, a extravasar frustrações retidas.

Um tanto ibérica. Dividida entre países, submersa na saudade, estrangeira por natureza e essência. Presa aos espaços e aos tempos, não mais a um que ao outro, a ambos em suaves amplexos ou em confrontos circulares. Acreditando no ato de inventar, sendo pura ficção de uma história ainda não narrada, narrativa improvisada, narradora inexperiente.

E o gerúndio se construindo na labuta dos dias e das noites. Sendo, sendo, sendo... na ação da existência.
E em paz.