quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Realejos e cristais - Comentário sobre o livro




Contos curtos e intensos. Objetivos e subjetivos. Suaves e impactantes. A autora transita entre o real e o introspectivo, entre o palpável e o intangível, entre o simples e o abstrato. Dotada de uma sensibilidade à flor da pele, percorre os meandros do cotidiano, captando detalhes aparentemente imperceptíveis, assim como cenas por vezes violentas da rotina. Os mergulhos são profundos, foge das superficiais aparências para submergir nos recônditos da alma. Não teme mostrar-se a nu por entre personagens legítimos e fictícios. Um passeio sinuoso que convida o leitor a seguir veredas mágicas, simbólicas e penetrantes.

Nasceu no Recife, Pernambuco, Brasil. Desde cedo começou a inventar histórias que iam se construindo ao embalo de uma ficção assemelhada a contos de fada. Cresceu sob a égide da imaginação. Mas, pouco a pouco, firmou-se numa linguagem pessoalíssima, elaborando, primeiro, as sílabas; depois, os vocábulos; e a idéia se transformando em matéria-viva. Sem preconceitos ou vestígios de intolerância, assumiu a tendência intimista com vontade inabalável, ainda que o corpo frágil indicasse hesitação; vendo, ouvindo, tateando e, sobretudo, sentindo: uma mania desarvorada de sentir. Trapezista que se equilibra entre o papel e a navalha, entre os fios de aço e a rede esgarçada, entre o parágrafo para concluir e a alucinação do ponto final. E a vida, a latejar nas veias...

Escreveu vários livros: crônicas, contos, romances, ensaios. Expectadora perdida em uma multidão anônima que se confunde com rostos múltiplos. Angustiada e introspectiva, lendo Virgínia Woolf, Katherine Mansfield; Albert Camus, Marguerite Yourcenar. E a indecifrável Clarice Lispector.

Vulcânica, inquieta, revolta.

E em paz.

Meu nome: Fátima Quintas


Os realejos, movidos a manivela, relíquias de uma casa sobrevivente, entoavam concertos ao som romântico e roufenho, enquanto os cristais quebravam-se à toa. As janelas fechadas recusavam a intromissão da luz; sem vento algum os lustres bailoçavam, as velas dos castiçais apagavam-se, as cortinas finas e delicadas voavam... Sem mãos alheias, os retratos mudavam de lugar, a louça antiga, guardada numa petisqueira do século XIX, aparecia arranhada, os sofás expulsavam as cobertas em crochê, o marquesão perdia o brilho do verniz... O riso tranquilo de Maria Gasparina ressoava, da porta de entrada à porta de fundo... até que o interruptor provocava um curto circuito.

A estética dos sentimentos




Fátima Quintas




O mundo é feito de emoções: surpresa, medo, riso, choro... Há dias tranquilos; outros, tumultuados. As previsões são tão fugidias, que escapam do nosso controle. Dependem das circunstâncias. E não somos capazes de traçar com segurança metas antecipadas. No redemoinho das sensações, trago a idéia de um cromatismo interior, sentimento que aflora em tom e semitom difuso ou clarividente. Procuro, talvez em vão, imaginar cores para as vivências. Atribuo uma estética ao subjetivo. Pois é, o sentir se alia à arte e todos os atos humanos dependem da maneira como cada um se depara com os acontecimentos. Carrego uma sensibilidade à flor da pele, vejo-me um acúmulo de intuições, perguntas sem respostas, devaneios, alheamento. Repito Fernando Pessoa: “Quando olho para mim não me percebo./ Tenho tanto a mania de sentir/ Que me extravio ás vezes ao sair/ Das próprias sensações que eu recebo”.

Os versos são belos e confirmam o exercício da estética. Tem sido assim com os grandes poetas, aqueles que dão à escrita a força das imagens: palavras que embalam fonemas num ritmo melodioso, a transcender a materialidade para atingir a abstração na sua mais fina agudeza. Quando leio Fernando Pessoa sou tomada por tal vibração que entendo que a vida reclama a arte em todos os momentos. Cada minuto deve ser vivido como se fosse uma obra de arte. Tempo igual à arte, eis a síntese da existência. Arte na palavra, arte na pintura, arte na escultura ou na menor expressão humana. A criação simboliza o ponto de partida. Afinal, “viver não é necessário; o que é necessário é criar”.

Tudo isso vem à tona porque ando atordoada com o ritmo do cotidiano. As pessoas transitam apressadamente e não sei para onde vão. Caminham céleres na direção do quê? Outro dia, mais especificamente horas antes do jogo entre Brasil e Coréia do Norte, ouvi impropérios de um motorista porque o engarrafamento se alongava na Avenida Dezessete de Agosto e os veículos começavam a driblar a fila, transformando a calçada num atalho em fuga. Neguei-me a adotar tamanha insanidade. Os desaforos foram disparados como num tiroteio às cegas. Mantive a calma, o que irritou o agressor, a ponto de descer do carro e encenar gestos descontrolados de violência física.

Em casa, refleti sobre o fato. Os tempos contemporâneos se revelam ruidosos, violentos, pragmáticos. Optei por refugiar-me nos versos de Fernando Pessoa. Logo relaxei as tensões anteriores. Compreendi que o bosquejo dos sentimentos reivindica um mínimo de meditação. A ascese não pode acontecer dissociada de constantes imersões. Invejei a rotina dos mosteiros, as clausuras isoladas, o passeio no átrio. Circulo de um lado para o outro, do frenesi à calmaria; então deparo-me com a lhaneza do dizer: “Amar é a eterna inocência,/ E a única inocência não pensar...”

Os sentimentos se completam na estética. Na forma. Na cor. Na gradação dos contrates. De Michelangelo a Picasso, os propósitos são semelhantes, cruzam-se e se tocam em linhas convergentes: a busca do belo. Os descompassos dos dias atuais se distanciam do culto à virtuose e proclamam a tecnologia como o cimo de todas as coisas. A humanidade mudou, e eu me tornei uma estranha observadora, alguém à deriva, escolhendo cores para retratar afetos e desafetos. Uma abstração que me agrada.

Como definir a cor do silêncio, da alegria, da lágrima? O silêncio será branco, límpido, prenhe de pureza? A alegria, amarela, expressiva? A lágrima, indefinida, quase oculta, a evocar o cinzento? Ou as tonalidades são ilusões de um coração nostálgico? No meu quarto de estudo apego-me ao que o poeta escreveu: “A minha alma partiu-se como um vaso vazio./Caiu pela escada excessivamente abaixo./ Caiu das mãos da criada descuidada./ Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.”

Entre a poesia e o futebol, ouço o barulho das vozes aplaudindo o primeiro gol do Brasil. Festejo. Preciso de ânimo para continuar a pintar a aquarela que nunca comecei.

O Recife: retalhos da história

Fátima Quintas





Tenho em mãos gravuras da cidade em que nasci. E a lembrança fragmenta os fatos. Um ali, outro acolá. Pedaços que permanecem vivos na memória histórica. Importa, todavia, recordar o que não vi.

O Recife surgiu de um pequeno povoado de pescadores no areial defronte dos arrecifes, gente humilde que vivia em torno das águas dos rios e do mar. Pouco a pouco a região começou a receber as embarcações que vinham da Europa, trazendo mercadorias para os habitantes de Olinda. Entrementes, acelerava-se o embarque de açúcar, pau-brasil e outros produtos que daqui migraram. O movimento das embarcações crescia, a reclamar a construção de armazéns, à época, chamados de “passos”. Casas de residências de trabalhadores surgiam; comerciantes também se instalavam em sobrados, utilizados tanto para moradia, os andares superiores, como para o comércio, os pavimentos térreos. O Largo do Corpo Santo adquiria uma feição bela. E eu o vejo nas gravuras à minha frente.

Assim o bairro se desenvolvia; a primeira igreja levantada foi a capela de “Santo Telmo”, ou “Santelmo”, origem da Matriz do Corpo Santo. Os holandeses, ao chegar, instalaram-se em um prédio defronte dessa igreja e aí fincaram a sede do governo. Trataram logo de aterrar os alagados para expandir seus domínios. A ”Aldeia do Recife” ganhava novos ares. Ainda que a sua evolução tenha sido rápida, somente em 1709 o Recife foi elevado à categoria de vila e, mais de cem anos depois, 1823, alçou a hegemonia de cidade. Em 1827, adquiriu o título de capital da província de Pernambuco, retirando de Olinda tal regalia.

A história do Recife não pode ser esquecida, mesmo que a sua linhagem arquitetônica tenha sofrido perversas demolições: arcos, monumentos, igrejas, palácios (como o das Duas Torres ou o da Boa Vista). Vale registrar que, em 1644, Maurício de Nassau inaugurou uma ponte de madeira, ligando o bairro do Recife ao de Santo Antônio. No ano de 1865 a ponte foi substituída por uma de ferro, feita na Inglaterra e semelhante à da Boa Vista dos dias atuais. Saliente-se que, em 1917, sofreu uma grande reforma, mudando a estrutura para concreto e adotando o nome de Ponte Maurício de Nassau. Há uma história de saudade nessa ponte, aliás, de intensa saudade: dois arcos se exibiam, um em cada extremidade — o de Santo Antônio, construído em 1743 e demolido em 1917, arquitetura simples e bem menor do que o Arco da Conceição, que ficava na outra ponta. O primeiro arco tinha um nicho no alto, o qual, em 1746, recebeu uma imagem de Santo Antônio, esculpida em pedra pelo entalhador João Pereira. Por esse motivo, no dia 13 de junho, dia do santo patrono, festas religiosas e profanas ali se realizavam. A propósito: o Arco da Conceição, de acordo com as gravuras/fotografias, transbordava beleza e foi impiedosamente demolido em 1913. Igualmente ali aconteciam, no dia 8 de dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição, inúmeras festas com participação popular. O comércio da redondeza fechava; as devoções revelavam o respeito da população à arte e ao místico; a fé recrudescia nas promessas encomendadas.

E a Cruz do Patrão? Coluna dórica, erigida em fins do século XVII, com seis metros de altura, encimada por uma cruz latina. Marco para os navios que entravam no Porto. Nas suas imediações, escravos eram enterrados, descuidadamente, ao léu. Sabe-se que muitos escravos não receberam acolhimento em modestas “sepulturas”, jogados na praia, corpos abandonados, o que causou grande espanto em cronistas, como relata a inglesa Maria Graham que presenciou urubus pinicando braços inertes. Por algum tempo, disseminou-se uma lenda: o local da Cruz do Patrão deveria ser evitado, sobretudo à noite, de onde sopravam lancinantes gemidos ou miragens de almas penadas. A Cruz do Patrão ainda existe; localiza-se ao sul do Forte do Brum.

A Rua 1º de Março tevê o nome de Rua do Crespo porque nela residiu o português Manuel de Sousa Crespo, que chegou ao Recife em 1648. O nome foi mudado para 1º de março, em 1879, com o objetivo de registrar o dia do fim da Guerra do Paraguai. Circulavam bondes de tração animal sobre trilhos, somente substituídos em 1914. Bom lembrar que a Livraria Ramiro Costa, uma das lojas mais tradicionais do Recife no século passado, inaugurou-se em 1888, exatamente nessa rua.
Muitos retalhos não sobreviveram. O Recife chora as perdas.

Mauro Mota, uma homenagem

Fátima Quintas





Novembro é um mês que aumenta a minha saudade, ao lembrar da morte do poeta Mauro Mota — 22-11-1984 —, um dos maiores de Pernambuco. Na ciranda da vida moderna, a tendência, aliás, lamentável tendência, é esquecer escritores e antepassados que deixaram herança literária, sentimental, afetiva, parte da nossa biografia. Se o tempo gira numa célere velocidade, dias se encurtam, meses se evaporam num piscar de olhos, anos já não dispõem do vagar de outrora... É preciso reavivar a memória e cultuar os entes queridos. Mauro Mota pertence ao mundo. Transcende épocas. Ultrapassa a pobre cronologia dos calendários vencidos. Suas palavras, suas canções de amor e de morte, sua melodia escandida em belas mensagens se expandem no ar, qual borboletas que se metamorfoseiam, porém nunca fenecem na linguagem da magia. Os poemas mauromoteanos tocam a alma, afagam a pele, serenam o espírito e se eternizam em ecos cadenciados: “Vem vindo o vento violento/ praticar infanticídios./Mata as rosas em botão,/ rosas cobrem outras rosas/deixadas mortas no chão”.

Pensar a poesia de Mauro é debulhar a emoção latejante, o vento que assobia em tempestade ou em brisa candente, as rosas que baqueiam, os suspiros que emudecem ou os gritos que sufocam a garganta, a pedir para bradar sentimentos recolhidos. Pensar a poesia de Mauro é receber o aroma da nostalgia ou a ondulação do verbo ser em vasta plenitude. Pensar a poesia de Mauro é vê-lo de novo perto de mim, brincadeiras constantes, riso animado, ironia sutil, às vezes nem tão sutil assim, ainda que nunca ofensiva, mas versátil, espontânea, inesperada.

Sei que sou uma privilegiada porque convivi com uma plêiade de intelectuais que me ofertaram um legado intransmissível. Mauro Mota pertenceu a esse grupo de elite pensante, de sensibilidade à flor da pele, de percepção especial, a traduzirem-se em palavras expressivas, plenas de significação. “A chuva cai sobre o Recife devagar,/ banha o Recife,/ apaga a lua,/ lava a noite, molha o rio,/ e a madrugada neste bar./ [...] A chuva cai, desce das torres das igrejas do Recife,/ corre nas ruas, e nestas ruas, ainda há pouco tão vazias,/ agora passam, de capote, transeuntes/ do tempo longe, esses fantasmas de mãos frias”.

Do sobrado da Rua Amélia avistava Mauro chegando ou saindo, eu, na janela, tímida de juventude. Porte fidalgo, o dele, semblante tranquilo e aquele jeito todo seu de apreender o mundo. À mesa do jantar, o despojamento e a conversa bem afiada. Naquele sobrado o meu universo se enriqueceu com gestos e louvores de amizade. Ao fim da noite, a música clássica servia de pano de fundo ao sono que se anunciava. Longas conversas prolongavam-se madrugada adentro, o silêncio da noite, Mauro lendo poesia ou prosa. Recordo-me de um sábado em que recitou de cor Manuel Bandeira e depois começou a ler “Infância” de Graciliano Ramos. Lia, relia, comentava, mergulhava no texto.

Vez por outra, Marcos Vinícios Vilaça, acompanhado de Maria do Carmo, entrava de supetão, e o bate-papo se animava. A sensação se traduzia em horas que ali se estendiam para além dos minutos cravados no relógio. E a sala se ungia de literatura marcante. Havia mais que sabedoria espalhada no ar; era o tempo da liturgia estética. As vozes se misturavam, mas a elegia de Mauro se fazia ouvir por todos os lados. Um dia me perguntou: “O poeta no momento de criar encontra-se feliz ou triste?”. Olhamo-nos silenciosamente.

A recordação ilumina o passado com fachos vibrantes. As imagens agora nítidas perdem qualquer nebulosidade. Novembro não é mais saudade. É lembrança. Ressurreição. Singeleza evocativa. O poeta está vivo, vivíssimo, a repetir em voz branda: “Debruço-me de fora/onde havia janela./Nuvem ou casa extinta?/ Lá estou como eu era”.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Saudades e retalhos

Fátima Quintas




Não faz tanto tempo que convivi com o poeta e amigo Mauro Mota. Parece que foi ontem, tal a vividez com que o conservo na lembrança. Eu era apenas uma adolescente à procura de mim mesma, uma procura que nunca cessou; prossegue com a mesma volúpia, pulsão inerente ao ser. Mas, de repente, cresci. Fiquei diferente. Somaram-se reminiscências. Sou o resultado de um tempo de memória. E recordo. Neste instante acodem-me os versos do poeta pernambucano: “Quero deixar-me longe. Separar-me/ de mim. Abandonar-me. Ser-me estranho./ Parto, mas, onde chego, me reencontro./Despeço-me de novo e me acompanho”.

As metáforas me levam à reflexão. A solidão é apenas física, nunca ontológica. Estamos juntos na multiplicidade dos eus. Em cada pedaço, uma partícula e, em cada partícula, a unidade. Contradição? Não há como fugir dos estilhaços que compõem o lastro existencial, por isso carrego as frações internas, algumas em sintagma, outras singularizadas, uma a uma, a desenhar uma paisagem plena de recortes.

Ando por aí, perseguindo o desejo de defrontar-me com os eus. E eis-me diante de um velho sobrado, desconhecido, anônimo. Olho-o. De novo reavivo imagens do poeta: “A sombra dele escorrega/ defronte, também, há três/ séculos, e escora a sombra de outro sobrado holandês.” Estou no bairro de São José; perscruto atentamente o casario longilíneo. O quadro em descompasso me aproxima, não me afasta. Prédios conjugados: alguns relativamente em forma; outros decadentes. Toda decadência tem um quê de dignidade porque se mescla com o mistério das coisas por findar, algo instigante, fantasmático.

Os fragmentos de mim, vejo-os; a exterioridade das paredes em declínio, também as vejo. Há uma fusão no cenário. Tijolos começam a desprender-se do velho sobrado, tão parecido à montagem do meu retrato. Estou em toda a parte e em lugar nenhum, e, no entanto, sou sólida catedral, porque existo, porque sinto, porque hospedo sentimentos universais. As palavras brotam, dispersas, à semelhança dos pedaços que me dividem e me multiplicam. Há um crescimento interior que ganha intensidade e volume à medida que o calendário avança. Já fui ontem; hoje, sou agora; e será que não serei futuro ao concluir esta frase? As minhas circunstâncias mudam, dia a dia os retalhos aumentam e acompanham-me para onde eu vou. O caro poeta tem toda razão. Quem disse que me aparto dos eus? Sou uma sombra no sobrado que me recebe em quietude. Sob a sua proteção, sinto-me companheira de todo o desmonte físico que o acomete. A desconstrução faz parte do próprio mundo. Do meu e do sobrado. O importante é vigiar com atenção os entulhos que se amontoam na caminhada.

A memória me agasalha na lembrança infinda. Mauro Mota indaga: “Que homens e passarinhos aqui germinarão?” A semente que fecunda está dentro de cada um, a alimentar o jardim das ternuras, a adubar emoções que explodem em outras plagas. A humanidade desabrolha ao surgir da alvorada, quando as esperanças renascem, grãos que frutificam a condição humana.

O sobrado sacolejou o meu nicho de saudades. Não sei bem por quê. Nem quero adivinhar. Basta-me compreender o que aparento e o que o sobrado expõe. Do lado de fora, o excesso de visibilidade; do lado de dentro, eu me escondo em frágeis subterfúgios. No fundo, as saudades se avolumam; misturo emoções, retorno à adolescência, à Rua Amélia, à Bento de Loyola — ruas onde morava Mauro Mota —, às conversas ao anoitecer, ao riso generoso, à bondade ilimitada, à fina ironia, ao lirismo, ao romantismo, aos poemas profundos, a uma época que me pertence e que me ajuda a superpor os meus retalhos. Mais uma vez repito versos que ressoam, e ressoam com a força da presentificação. Então descubro que há um só tempo — o que vivo: “Vou em busca do ter-sido./Desapareço no espaço./ Fico de novo perdido./Procuro-me, e não me acho”.

Viver consiste na intensa procura e na certeza de nunca achar.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

No lusco-fusco

Fátima Quintas



O acordar traz sensações diversas. Há dias que a gente amanhece leve, a voar como um pássaro, planos sólidos, esperanças confiantes; as pálpebras se abrem diante de um céu azul, limpidez no horizonte, estado quase de levitação. Noutros, as emoções diferem: os olhos pesam, a natureza parece estática, o sopro das reminiscências soa mais alto. Somos contraditórios dentro de uma coerência cotidiana. Pois é, hoje despertei um tanto escura.

Há fachos de penumbra em mim neste instante. Não adianta enganar-me: a tropicalidade, com o excesso de raios luminosos, me turva. O sol clareia demais os sentimentos, tornando-os enodoados; a minha timidez opta por guardá-los em gavetas cerradas. Prefiro reservá-los nos nichos do inconsciente que devastá-los na ostentação dos holofotes. O mundo se mostra tão truculento que tenho receio do seu aparente fausto. As noites, essas me recebem sob o agasalho da recatada intimidade. Delicio-me com os fins de tarde, quando a luz perde a imponência maior. Pode parecer estranho; mas é no escuro que meus olhos fisgam o imperceptível.

Acordo imbuída do prazer estelar. E, no entanto, o quarto de dormir se deixa banhar pelos feixes do sol. A janela, devasso-a para respirar o oxigênio da renovação. Tenho sede de vida; vou vigiar o lusco-fusco com o intuito de entregar-me por inteiro à sabedoria dos despojados. Antes, todavia, há muito o que fazer: irei ao banco, pagarei contas, despacharei os papéis que se avolumam no bureau, aborrecer-me-ei com o gerenciamento do dia. Caminharei de um lado para o outro a resolver detalhes burocráticos: o corpo se cansará na rede imbricada das relações formais e, depois, o cansaço da labuta me impelirá ao claustro — ao quarto de estudo. Apagarei as luzes, acenderei uma vela, olharei atentamente para a chama, então rapidamente me recuperarei dos inúteis afazeres.

Os relógios se consumiram na inapetência de atos administrativos. Os olhos se gastaram espiando homens e mulheres devorados pela gangorra da burocracia. Estou a salvo. Tomo um banho. Purifico-me. O ritual do sossego se inicia: no silêncio da noite e na placidez da vela. A essa hora não ouço os ruídos das construções circunvizinhas, a campainha da porta, a velocidade dos carros, o burburinho de vozes em conversas desinteressantes, as discórdias do mundo... Escuto apenas a quietude da lua se escondendo ou despontando à meia-noite.

Não penso em nada. Quero esvaziar-me das nódoas de uma insípida manhã. Sinto-me completa na liturgia da vela; é tempo de apreciá-la. A chama se transforma de minuto a minuto, constante mutação, um vir-a-ser ao ritmo do filósofo Heráclito, tudo em plena circunvolunção, e agora, e depois do agora, e o mesmo agora, e o presente dilapidando o instante, e Clarice Lispector a se perguntar pelo “é”...

Fecho os olhos. Enxergo-me. A vela continua na cadência do fogo. Mergulho na ausência das coisas para depois absorvê-las com maior intensidade. Foi não foi, é necessário uma faxina interior, rasgar as emoções com a intenção de substituí-las. Qual o quê! Não serei capaz de anular minhas lembranças; por mais que me esforce, é vão todo o propósito. O inconsciente se encarrega de reter o que quero e o que não quero. Um jogo de subjetivações para o qual me doo com um certo gozo.

O tempo firma a madrugada. Durmo ao embalo de um vazio proposital, ainda que a cada dia cresçam as minhas ressonâncias. E não há como escapar da menor recordação: chego à conclusão de que o meu problema é tão somente esquecer... Impossível. A memória define minha identidade. O resumo do meu “eu” corresponde ao espaço da evocação. Assim, em um poço de oposições, vou edificando dias e noites.

Amanhã, acordarei mais clara e escreverei sob a ode das cores, até berrantes, quem sabe? Hoje estou escura. Ao modo de Drummond: “estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio”.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Letra viva

Fátima Quintas




Preciso da literatura como preciso do ar para respirar. A ficção me acalenta com sua intricada urdidura e sua aura imaginativa. A liberdade se reduz ao voo da criatividade. Pensar sem barreiras permite que a alma desabroche e corresponde à janela aberta de ponta a ponta, sem divisórias entre o espaço da natureza e o espaço que me habita. Sou um bloco uníssono quando me disponho a olhar para fora e para dentro de mim, através de um diálogo íntimo e, por que não?, egoísta. Ler as entrelinhas diz do maior mistério da letra viva. E a letra só tem caráter intrínseco transformada em substância latejante, imersa na identidade própria e na sutil significação. Não há como fugir do implícito, nele reverberam as possíveis "verdades" da escrita. Clarice Lispector antecipava: "Mas já que há de se escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas". A vida só tem sentido imaginada, e não vivida concretamente. A ilusão ganha vigor pulsante. O jogo do dia e da noite serve de lastro às utopias inscritas e escritas no espírito. Então o valor da palavra se desdobra para além de si, alcançando horizontes longínquos, às vezes esfumados na nossa inspiração. E o caminho se perde no infinito do devaneio.

Quando Virginia Woolf quebrou os tabus de uma escrita limitante, assumiu a autenticidade de si própria. Não se deixou debulhar em parâmetros impostos, mas dilacerou as amarras que porventura a sufocavam. Escreveu em pleno gozo de sua saudável loucura - delírio suicida. Entregou-se de corpo e alma a um sonho impossível. O sonho foi maior que ela, arrebatando-lhe a vida. Nem por isso seus textos anularam a largueza de uma prodigiosa transfiguração. Perenizou-se. O ato de existir reclama um processo de transcendência. Se a escrita carimba o selo da constância, deve-se à letra o poder de conquistar uma lembrança que não esmorece com o tempo, porém vence a cronologia para galgar a duração de um signo eterno. A letra consigna a força que detém.

Guimarães Rosa se enredou num vocabulário original, quis lidar com palavras comuns e incomuns, ressignificou o nome mediante a capacidade de gestar um pensamento tão regional quanto universal. Suas frases vêm carregadas de belos enigmas: "A gente só sabe bem aquilo que não entende". "Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez ache mais do eu que a minha verdade". "Meu duvidar é uma petição de mais certeza". "Mente pouco, quem a verdade toda diz". "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura". São as entrelinhas que dignificam a escrita. O explícito empobrece, banaliza o que deve se esconder, oferece-se sem cerimônias. Ocultar prenuncia a sabedoria daqueles que dominam o que dizem. Assim acontece com os poetas que metaforizam os versos e revelam apenas a metade das significâncias. Para que ir além? Basta caracterizar o não dito na simbologia do que se quer dizer. Então temos o verso incompleto e absolutamente completo.

Fernando Pessoa brinca com a nudez e com a reclusão das palavras: "A minha alma partiu-se como um vaso vazio./ Caiu pela escada excessivamente abaixo./ Caiu das mãos da criada descuidada./ Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso". A ficção é a verdade que conheço. Nem quero outra. Inventar me encoraja a viver, única forma que encontro para driblar as curvas acentuadas da estrada. Se me invento, revelo-me pelo avesso. E o avesso nunca mente, reflexo de um eu não lapidado, quase cru na essência, mais puro e menos danificado pela ventania ontológica. O que me salva e me condena são as entrelinhas, as hesitações diuturnas, a volúpia de criar novos cenários num picadeiro por mim construído. Há o riso, há o choro, há a expectativa, há a atenção... e a rede do circo não existe. Nem por isso o trapézio minimiza o perigo. As entrelinhas me acompanham no mistério e no mágico da letra. Ainda bem.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Maria, uma lembrança

Fátima Quintas





Ela me advertia que não corresse pelo quintal com tanta volúpia. A menina podia se machucar. Ela anunciava a chuva que não tardava a desabar. Ela cuidava da roupa com dengos especiais, a amaciar os vestidos de organdi, de modo que não picasse nas costuras sob os braços. Ela penteava meus cabelos, colocava birilos que logo escorriam pelas madeixas finas e levemente cacheadas. Insistia em modulá-los à direita, franja desfiada, jeito infantil: ajeitava ali, ajeitava acolá, fazia a recomendação para que não os assanhasse. Sentia prazer em vê-los arrumados. No dia de tirar retratos, os olhos se voltavam com maior zelo para os cabelos, como se o charme feminino neles se localizasse. Ela disciplinava os horários do lanche e, sobretudo, dos sucos, o de graviola, meu preferido. Ela se enredava com os trabalhos da casa, mas não deixava de vigiar-me. Ela tinha apenas 15 anos. Ela... Ela... Ela...

Nome simples, Maria. Maria de quê? De nada, Maria pura, retrucava irritada. Recordo-me perfeitamente do rosto: arredondado, gordinho, óculos de miopia, cabelos volumosos, bem cacheados. Curtos. Não sabia ler. Mais tarde, tentei ensinar-lhe. Ela não quis. Gostava daquela sábia inocência, olhava o jornal como quem lê as notícias com interesse, folheava atentamente, descobria os “reclames”, intuía a mensagem publicitária, acertava sempre. Ria com as fotos exibidas, adorava imitar os vestidos das damas e das antigas princesas que apareciam nos figurinos das costureiras. Foi não foi, copiava um modelito, e era feliz. Maria participou de toda a minha infância e adolescência, riso desconfiado, conversa que nunca acabava. Histórias de Canhotinho. Sua cidade.

O melhor lugar do universo. Canhotinho tinha de tudo. Praça, igreja, lojas, casas bonitas, ruas arborizadas, o paraíso. Ouvia a sua narrativa sem pestanejar: a mãe morreu cedo, o pai casou de novo; foi então morar em casa da tia porque assim evitava os desafetos com a madrasta, por quem não nutria sentimentos nobres. Admirava o pai, bonito, sereno, dono de um fiteiro situado na esquina mais movimentada da cidade. Vendia muito. Sustentava os filhos e a mulher com os ganhos auferidos. Maria era o símbolo de um saudoso atavismo. Não reclamava, todavia. Acatava o destino com uma certa altivez: “Gosto de ver os dias passar, a vida vai sempre, nunca volta. Queira não queira, tenho que seguir os seus passos. Moro em qualquer lugar. O mundo é igual, igual, igual. Redondo”.

Acordava cedo, tomava um banho com sabão de coco — só servia sabão de coco — alvinho, higiênico; lavava os cabelos com sabão Aristolino, bem lavados; usava vestidos sempre acinturados e colocava um avental branco, a lembrar toalhas de altar de igreja. Depois, rezava o terço; estava pronta para a labuta do dia. Tinha mania por limpeza, daí a alvura dos dentes. Religiosa, o que não a impedia de acatar os arroubos libidinosos. Namorar era o seu fraco. Aos 15 anos, já tocaiava os pequenos amores. A partir dos 18, ninguém a segurava. O corpo reclamava a chama das paixões; ela não tergiversava, acatava os desejos da carne.

Casou aos 25 anos, depois de uma longa lista de namorados. Ele bem mais velho: 40 anos. Homem experiente, porém responsável. Viveram juntos 10 anos. Morreu de infarto fulminante. Maria ficou só. Nunca pôde ter filhos. Casou em seguida e prosseguiu a saga dos inocentes.
Há muito não a vejo. Viajei, retornei, amadureci. Os dias se tornaram meses, anos, décadas; a memória, entretanto, reaviva passados, os meus. Sempre que penteio os cabelos a imagem de Maria reaparece, um olhar inquisidor que às vezes me mete medo. Ainda ouço o mantra: “Os cabelos devem ser macios como o veludo das almofadas. Não esqueça de acarinhá-los com sabão Aristolino”.

Foi ontem. O telefone tocou, a cobrar. De São Paulo. Era Maria. Voz firme, a sabedoria de sempre. Comunicava que ia se casar pela 5ª vez. Narrou a rica biografia sentimental. Ouvi os detalhes com a melancolia que a distância impõe. Ela estava lá. Eu estava aqui. E o vácuo cronológico reforçava a saudade.

Nem falou nos meus cabelos... Que diria ela ao vê-los brancos agora?

Mulheres à janela

Fátima Quintas




Na viagem que empreendo à Zona da Mata maravilho-me com uma pequena rua, repleta de moradas simples, lugarejo ausente, um cartão postal, a esculpir rostos à janela, atentos, quase paralisados; perfis que poderiam ser esculturas de pedra. Olhares cândidos vigiam a vida, ternos, vagos, lúdicos, a perscrutar a realidade sem fúteis inquietações. Ar lânguido, passivo, pacífico. Aprecio cuidadosamente a paisagem: casas conjugadas, pintadas de cores verdes, azuis, beges, enfileiram-se em harmonia, mulheres vestidas com roupas de chita, cabelos compridos e presos, faces amenas, comissuras delineadas. São 2 horas da tarde; a vila se encanta com os pequenos derredores. Ando a pé, cautelosamente, a ver um quadro que me sugere irreal. Mulheres silenciosas, um tanto apáticas, mas de aparência feliz. De bem com o tempo. Sem aflições exteriores. Resignadas e pacientes diante do mundo miúdo, seu, seu.

Não são adolescentes as mulheres que passam à minha vista. Rostos assemelhados, a estética rural me convida a percebê-las de modo diferente. O relógio anuncia as horas, elas pouco se incomodam; ali se detêm a mirar o destino de uma rua, tão igual às outras, porém, com a chancela da familiaridade. Essa é a rua em que moram, em que choram as dores diuturnas, em que se alegram com maridos e filhos... Sozinhas, agora, miram.

Hora de lazer. Almoço servido, pratos lavados, crianças a brincar na praça da esquina. Tarefas cumpridas. A janela transcende a labuta do lar. E ali relaxam o corpo e não pensam em nada, somente no vazio da rua, momento de descanso, uma pausa na existência. Deixo-me envolver pela trégua dos minutos, já não estou em mim, sou penas uma entre os rostos estatuários. Mas há um hiato intransponível entre o que sinto e o que elas sentem. Por mais que tente me livrar das minhas memórias, os acordes acabam ressoando nos ouvidos. Mesmo assim, sabe-me bem ouvir o silêncio das mulheres à janela.

Então ouço e vejo. Vejo lábios balbuciando repetidas preces; vejo risos de prazer disfarçados em discretos rictus; vejo peles ressequidas pela aragem do mormaço, próprio do início da tarde; vejo a paz estampada nos rostos, rostos humildes, anônimos. E ouço o quanto o silêncio me diz da história de cada uma. Maridos labutando na lavoura, filhos na escola, os pequerruchos a correrem em lugares seguros; mulheres de trinta a quarenta anos, mãos envelhecidas pelo desgaste do trabalho diário, magras, manchadas, corpos pouco tratados. Não se entreolham, o retrato é de frente, e o mundo se perde no pequeno quadrilátero vivente: Maria, Quitéria, Amara, Rosália...

Alguém me revela o nome? Não. O silêncio representa o único interlocutor. Mulheres impávidas, braços repousados nos alisares; resta-me a expressão de rostos calados, afirmativos, a refletir o cansaço dos dias. Eu me ponho à espreita, tão inativa quanto elas; elas, mulheres desconhecidas, que sabem usar o que a janela simboliza, janelas que vão além, além, além de cada uma. Para além da hora presente. Adiante, sem limites. Ao horizonte perdido. Assumo uma inércia que se quer imóvel. E são duas horas da tarde. Cedo demais para vaticinar caminhos.

Nenhum carro, nenhum transeunte, ninguém. Engano-me: avisto um homem sentado na beira da calçada. Calçada alta, estreita, com pequenas escadas para acessá-la. De três a quatro degraus. Coisa pouca. E a janela aberta, os dois postigos, cada mulher só.

Deambulo de um lado para o outro; pessoa alguma se interessa pela estranha visita. Que importa àquelas mulheres a minha presença? Nada indago. Contentam-me as imagens plácidas, indiferentes às circunstâncias, as delas e as minhas. A hora pede apenas repouso. Entendo a mensagem e permaneço quieta. Muitas janelas. Conto: doze.

Passa das três horas quando abandono o lugarejo de um município que não identifico. Os rostos sem nome impregnam-se ao meu, ainda que nenhuma palavra tenha sido dita. Para quê?

Chile

Fátima Quintas




Dia 13 de outubro. O mundo hipnotiza-se diante de imagens aparentemente irreais. A emoção se instala em rostos anônimos. O mineiro Florêncio Ávalos, 31 anos, aponta dentro da cápsula Fênix. O primeiro sobrevivente da tragédia do deserto de Atacama irrompe de rosto sereno, sorriso nos lábios, a transmitir tranquilidade. Abraça prolongadamente o filho, Byron, de 7 anos, afaga a mulher num ímpeto de ternura, e cumprimenta, triunfante, o presidente chileno Sebastián Piñera. Está de volta. Nos olhos dos telespectadores, a lágrima incontrolável, o choro contido de dias acumulados. Cena inesquecível. Os outros serão içados lentamente, ao compasso de uma sequência estipulada com antecedência. Assim foi: Mario Sepúlveda, Juan Llanes, Carlos Mamani, Jimmy Sanchez...

Diante da televisão, assisto ao mais belo espetáculo exibido pela humanidade. Sem alardes, sem apelos histriônicos, sem alvoroços indevidos, a cápsula desce e sobe em um ritmo quase simétrico. Meus olhos pouco piscam, o momento é de arregalá-los, abri-los com a mesma intensidade do feito histórico. A ciência a serviço do homem, religiosamente prudente na sua missão redentora. Nessas 24 horas, um pouco menos, os sentimentos mais nobres da humanidade emergiram, ao som dos sinos das igrejas chilenas que repicavam freneticamente. Homens sobreviventes recuperavam o sentido da vida, resultado de uma equação milimetricamente traçada entre o irretocável controle psicológico, a férrea disciplina e a harmonia da coesão. O Chile demonstrava a sua humildade cívica e com ela abalava os corações latejantes.

Por último, cabeça erguida e missão cumprida, Luis Urzúa Iribarren, chefe do turno e líder dos mineiros, ressurge das cinzas, às 21h55 do dia 14 de outubro, tal qual a ave Fênix. A simbologia do nome, Fênix, retirado da mitologia do antigo Egito, acompanha o ato solene, paramentando-o de uma aura de sacralidade. Algo mágico, inexplicável, paira no ar. O deserto de Atacama não é mais o deserto de Atacama, mas o templo da solidariedade humana. Clímax, apoteose, vitória. Ícone de resistência de 33 homens que viveram 69 dias a 700 metros de profundidade, solapados na Mina San José, em condições absolutamente adversas à vida humana: umidade excessiva, temperatura alta, ausência de mínimas estruturas. E, no entanto, a luta pela sobrevivência, a esperança, a força dos espíritos superiores, sob o comando de um líder vigoroso, criaram uma ambiência capaz de fortalecer a vontade de prosseguir a caminhada. Uma tragédia, vencida pelo amor de mãos que se uniram.

A intensa cumplicidade de 33 mineiros criou laços inquebrantáveis. Uma lição da qual devemos extrair inúmeras reflexões, entre elas: a importância da organização como método de sobrevivência e, sobretudo, a prova inequívoca de que tudo é possível quando a solidariedade acontece, mesmo no escuro, ou melhor, no breu da Mina de San José. O entendimento entre pessoas soterradas, aparentemente condenadas à morte, transcendeu questões mesquinhas tão comuns ao cotidiano de homens livres, saudáveis e arrogantes. Se o Brasil atravessa uma séria crise ética — distorção de valores, banalização da desonestidade, mentiras travestidas de verdade, enfim, atitudes agudamente deploráveis —, por que não meditar sobre a altivez dos mineiros e a simplicidade do povo chileno? Mulheres que aguardaram os seus homens de vestidos novos, maquiagem bem dosada, arrumadas para a festa do encontro. Gente como a gente, a valorizar o heroísmo de uma Nação.

Não é possível, meu Deus, que o resgate dos mineiros não venha a provocar uma reconstrução na ordem social do mundo; não é possível que a bravura, o caráter, a lealdade não estanquem “As Veias Abertas da América Latina”, a plagiar o livro de Eduardo Galeno; não é possível que o destemor desses homens não sacoleje mentes avaras, perdidas na inveja, na falta de caráter, na desonra. Não. Não é possível! Perdoem-me os leitores, mas não posso comparar as emoções de hoje com as experienciadas com a conquista da Apolo 11, quando da chegada do homem à Lua. Ali fervilhava o apuro da tecnologia; aqui há uma convergência de fatores humanitários, além da perícia técnica.

O Chile ofertou ao mundo um exemplo de dignidade e perseverança na comunhão de elevadas fraternidades. Que a força dos 33 mineiros do deserto de Atacama se multiplique em cada um de nós, mediante a concretização de utopias que plasmam desejos porventura embutidos. Basta que os sentimentos prevaleçam. Nada mais.

Um cheiro, por favor

Fátima Quintas



Há quanto tempo não recebo um cheiro? Aquele afago pleno de mimos, com caprichos de sutileza, macio, doce, especial. Ah! que saudade do gesto brando e agradável! Uma prática requintada que se traduzia num apelo de leveza. Sim, nada mais singelo que um cheiro. Na minha juventude cheiros pululavam a toda hora, em qualquer lugar, nos encontros informais, nas festas de colégio, nas quermesses... Sem que desse por isso, os anos se passaram, as relações se tornaram mecanizadas, a humanidade acanhou-se diante do jeito de sentir, os meneios solidários desapareceram, mas a terra continua girando em torno do sol — Galileu morreu repetindo: mas ela gira, sim. E os sentimentos trocaram de expressões, embora na essência sejam os mesmos: o riso, o choro, a alegria, a tristeza; todos somos iguais na ciranda da vida. Fico a pensar: por que esquecemos o cheiro?

Onde anda o romantismo? O aprendizado existencial me chama a atenção para os antigos costumes, fora de moda, anacrônicos, escondidos em baús fechados a sete chaves, talvez infestados de bolor. Não desisto de perguntar: o que fizeram dos meus encantos? “Perdi o bonde e a esperança./ Volto pálida para casa”. Parece que Drummond nos socorre quando o cotidiano precisa de poesia. Assim, em momentos difíceis, lembro-me de “José”; quando os amores não são correspondidos, logo, logo, recorro à “Quadrilha”; se enfrento um obstáculo, a imagem mais clarividente que encontro é a “pedra no meio do caminho”; diante das vulnerabilidades, coração machucado, arremato: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”; se existe um descompasso em meus devaneios, apego-me à rima, “mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”. Como sobreviver sem os versos do poeta? Trago-os na mais recôndita porção da alma e de novo apego-me às suas transfigurações: “E depois das memórias vem o tempo/trazer novo sofrimento de memórias,/ até que, fatigado, te recuses/ e não saiba se a vida é ou foi”.

A memória persevera. Atiça a consciência. Reclama espaços num mundo prenhe de renovações. A vida é o que foi. O presente se faz breve, brevíssimo, enquanto o passado corresponde ao tempo consistente, sólido, verdadeiro. Bem sei que os dias fluíram... era ontem quando repetia ao despedir-me: um cheiro para você. Haverá coisa melhor que um cheiro? Ato gracioso, carícia das mais instigantes, oferecida sem abruptos rompantes, devagar, nenhuma presa, como se as emoções se tocassem levemente; sopro epidérmico, movimento gentil e toda a carga de uma ternura sem fim. Adeuses se traduziam em nuances de acalanto à sombra de manifestações infantis ou adultas. Um cheiro pelo telefone; um cheiro ao avistar o amigo; um cheiro de amor.

De repente, tomo um susto, um grande susto, sinto-me traída na minha história: os dias atuais ofuscaram a dimensão lúdica da rotina. Não há tempo para as belas tradições. Ecoam apenas ressonâncias de um pretérito não tão distante assim. Todos correm em direção ao nada, os carros buzinam, o frenesi se instala, ninguém conversa na esquina, as mãos se agitam em desordem, vou e volto, não faço coisa alguma, angustio-me para chegar pontualmente em compromissos marcados, a agenda está repleta... Nem sei o que se passa em mim, os sonhos esmoreceram em uma certa encruzilhada, e então... e então... e então! Estou cansada, o corpo pede um mínimo de sossego. Acordo, olho o relógio, atropelam-me os atrasos. Desperdiço horas, meses, anos... ando a patinar em gelo, escorrego na estrada da vida, levo um tropeço; não importa, ninguém viu. Há tanta gente nas ruas, nos mercados, nas lojas!...

E tudo isso para quê? A verdade é que o cheiro sumiu ou, pelo menos, perdeu a força majestática. Outro dia me surpreendi ofertando um cheiro. Foi quando deparei-me com o espanto de um impulso inopinado. Serei alguma ré de gestos à antiga? Acho que sim. Confesso: não me preocupa esta indisposição com o mundo excessivamente ocupado. Carrego uma saudade embutida no peito, um grito de pasmo, ás vezes, até mesmo uma frustração por não ter defendido com mais afinco os valores que me faziam feliz e que lamentavelmente feneceram. Por que não recuperar um dedo de prosa na hora crepuscular, um ingênuo flerte à entrada do cinema, um pouco de pó de arroz para embelezar a face, os frequentes “assustados” em casas de amigo, o guaraná Fratelli Vita e as suas gasosas de maçã e pera que tanto aplacavam a sede, o Corta-Jaca, lá em frente à casa do Navio, na Av. Boa Viagem, os maiôs Catalina, pretos, elegantes, que vestiam as candidatas do concurso Miss Brasil?

Que a modernidade se vanglorie de excelsos pragmatismos, que a tecnologia se desenvolva para atender necessidades crescentes, que a população se iluda nos corredores dos shoppings, a avistar montras habilmente sedutoras, que tudo aconteça em nome da celeridade dos tempos contemporâneos, celurares, DVDs, GPS, tudo, tudo... menos desprezar o cheiro tão genuinamente delicado, inocente e bucólico.

Um cheiro, por favor.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Somos todos iguais

Fátima Quintas




Gosto de poesia. Considero-a o ponto alto da literatura, paroxismo da palavra, o resultado de um esforço enorme de sensibilidade. São inúmeros os poetas da minha preferência. Não ouso enumerá-los, cometeria sérias omissões. Hoje, todavia, debruço-me sobre Carlos Drummond de Andrade; vejo o mundo através das suas lentes. Começo com dois versos lapidares: “E cada instante é diferente, e cada/ homem é diferente, e somos todos iguais”. Não preciso dizer mais nada, qualquer palavra sobra, excede-se, o artigo deveria terminar aqui. Já há elementos simbólicos suficientes para a reflexão. Ser igual na diferença corresponde a um dos mistérios da vida ou, pelo menos, ao grande enigma que nos rodeia. Diverso e uno. Igual.

E não importa o lugar. Aqui ou alhures, as dúvidas e as hesitações se assemelham. Mudam tão-somente as reações: ora de um jeito, ora de outro; no fundo, a mesma disposição de um sentir que se mimetiza à humanidade. Drummond atinge a todos sem pedir licença. Vai tecendo o novelo da existência à sombra de metáforas que o eternizam. “Quando nasci, um anjo torto/ desses que vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! ser “gauche” na vida”. Quantas vezes sou “gauche” na vida ou me sinto “gauche” nos momentos estranhos a mim. Não consigo acompanhar a intensidade ou a morosidade do caminho. Ando por outras veredas e me atraso no ponto de chegada. Encalho em portos errados, quero fugir, não saio do lugar. Por fim, vou e me deparo com fantasmas que eu própria criei. Então, aguardo que destino tomar. “O bonde passa cheio de pernas:/pernas brancas pretas amarelas./ Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração./ Porém meus olhos/ não perguntam nada”.

Há gentes e gentes e gentes a ir e vir, ninguém me conhece. Misturo-me à população numerosa, tantos rostos me cercam. De todos os lados, vejo-os e acabo não vendo ninguém. Os olhos não perguntam, choram. Há uma onda flutuante que me aflige. Sigo quase sempre na contramão. E percebo-me à margem de um mundo que se modifica a galope, independente do meu desejo — prossegue soberano, numa inconteste autonomia, alheio a pulsões individuais. Que todos se tornem peregrinos de uma mesma multidão. Essa é a ordem vigente. Os que se afastam da poderosa engrenagem são estranhos à dinâmica do processo. Tenho consciência de que sou “gauche” na vida.

Ah”, Drummond, como encontro em seus versos acalanto para o meu desconforto. “Em dois milhões de habitantes,/ quantas mulheres prováveis/interrogam-se no espelho/medindo o tempo perdido/até que venha a manhã/ trazer leite jornal e calma”. O espelho me fala o que não gostaria de ouvir. A face se transformou e o tempo continua a girar, incólume, arrogante, um ditador que me mortifica a cada instante na sua linguagem irreversível. O tempo perdido me aflige, não ouso recuperá-lo, quão difícil detê-lo na angústia da cronologia!

Aguardo o leite e o jornal e a calma que vem depois. O jornal chega, o leite, compro-o na padaria mais próxima; a manhã, tão restauradora, se apequena em compromissos inadiáveis. Mas a rotina me acalma, sim, me agasalha num ritmo que gosto, a garantir o sossego do dia. Ninguém ama a rotina mais do que eu. Sou um gato retornando ao mesmo canto.

“Tenho saudade de mim mesmo,/saudade sob aparência de remorso,/de tanto que não fui, a sós, a esmo,/ e de minha alta ausência em meu redor.” O poeta se solidariza com essa saudade que me persegue. Deixei para trás um punhado de coisas que poderia ter feito. Daí o remorso de ver que as horas deveriam ter sido preenchidas com o sonho, nada de vácuos nem hiatos a sustar o desejo. Não se deve estancar a cadência da alma; urge que a pulsão interior comande os sentimentos.

Sou “gauche” na vida, as minhas pegadas não se apressam entre pernas ávidas de algum querer desconhecido, o espelho reflete devaneios perdidos, por isso, tenho saudade de mim mesma sob a aparência de remorso, mas o poeta aplaca a perigosa travessia do ofício de viver: afinal, somos todos iguais.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O mundo de meu avô

Fátima Quintas




Precisei ir ao bairro da Ilha do Leite. Não me apetece sair das minhas cercanias. Mas heroicamente fui. Tomei o carro, saindo de Casa Forte, e levei uma hora para chegar ao destino. Até aí tudo aparentemente dentro do suportável em dias atuais. Suportável? O retorno deu-se às 17 horas. O mesmo percurso contabilizou 2h30. Engarrafamento descomunal: carros a buzinar, marcha lenta, irritação coletiva. O Recife transformava-se num mar de gente. Uma população transbordante, uma multidão anônima que falava, gesticulava, perdida, perdida, a denunciar sentimentos de orfandade. Triste do país que não possui seus heróis. Não havia o que fazer, tampouco a quem recorrer. Ônibus, automóveis e motos atravancados, à espera de algum messias libertador. As esperanças se ofuscavam no patente desespero. De olhos abertos, bem abertos, tive medo do quadro asfixiante. O engarrafamento se estendia por quilômetros; e não se sabia a razão do porquê. Então, pensei em meu avô paterno, Gabriel Soares Quintas. Na sua velhice, encontrava-o placidamente deitado na rede, a jogar palavras cruzadas. Nada de longas caminhadas nem de alvoroços descabidos. Morreu aos 88 anos, de choque anafilático. Saudável, memória intacta, apetecia-lhe narrar as histórias do seu tempo de magistrado, quando percorria cidades do interior de Pernambuco. Referia-se a Gravatá com profundo afeto; assim, amei antecipadamente a cidade das Serras. Meu avô distinguia-se pela originalidade. Figura marcante e solitária. Surdo, acostumara-se tanto ao silêncio, que rejeitava todos os aparelhos que o ajudassem a ouvir. Apegava-se às suas circunstâncias, idealizando um Nirvana pessoal. Dizia com frequência: “Como será o mundo daqui a 50 anos? A neta o conhecerá; eu não. Ainda bem! Tenho pena das gerações futuras”.

Meu avô mostrava-se pessimista diante do advir. Na minha entusiasmada juventude as palavras fluíam sem ecos expressivos. Naquela tarde, entretanto, as lúcidas observações ganhavam o contorno de um vaticínio que já não me pegava de surpresa. Estaria o mundo em plena decadência? O fato é que reproduzo a mesma indagação: “Como será o mundo daqui a 50 anos?” Se os ruídos, a pressa, a vulgaridade, a ausência de valores, a corrupção, a falta de ética, o urbanismo sem planejamento, o desrespeito cívico e tantos outros males corriqueiros me assaltam, de forma devastadora, como tecer profecias que se alongam para além de meio século? Júlio Verne antecipou fenômenos, George Orwell também o fez no livro “1984” — escrito em 1948 —, a ficção científica — “Blade Runner”, de Ridley Scott, “Inteligência Artificial”, de Spielberg, “Sunshine, o alerta solar”, de Danny Boyle — igualmente busca prognósticos visionários. Quem sou eu, todavia, para maquinar previsões?

A humanidade deseja vencer o ritmo da natureza. Não só: os limites do corpo e da mente. Obstáculos intransponíveis inexistem. O importante é desafiar, desafiar, desafiar... Até?! Às vezes me pergunto se o meu nível de tolerância despencou ou se o mundo de hoje corresponde ao que o avô preconizava. Ele, o sábio avô, não curtia a rua, saía pouco, gostava de casa, aconchegava-se no quarto, lendo, fumando, pensando... fazendo palavras cruzadas. A tranquilidade reinava, os vizinhos se conheciam, ajudavam-se mutuamente, havia um mínimo de solidariedade, as pessoas entregavam-se à conversa fiada, o padeiro chegava à hora certa, o leiteiro, ao longe, anunciava a garrafa de vidro grosso, o rapaz do pirulito empunhava, feliz, a tábua de madeira, cheia de pequenos orifícios para acomodar os nacos de mel queimado. E o cavaquinho? A batida sonora no triângulo de metal incitava as glândulas salivares e raro o dia que não se saboreava a fina massa de trigo estalando. A casa de meu avô, à Manuel Bandeira, simboliza o oásis do passado. Recordo-a como um oráculo de ternuras.

E a fila não andava; de nada valiam os impropérios. Ouvia-os ao modo de uma despistada artilharia. Já era noite e ainda me encontrava na Avenida Agamenon Magalhães. Somos todos reféns de um mundo ousado e sem controle. Astucioso, irreverente, a provocar múltiplas desarmonias. Na selva de pedra, o caos se instala à vontade, sem pedir licença, consequência de uma modernidade em declínio.

Para suportar a desolação das horas perdidas resolvi abstrair o contexto e mergulhar na serenidade da casa de meu avô.

A vida de todo dia

Fátima Quintas


Verifico a despensa da minha casa. Faltam alguns itens indispensáveis. Resolvo ir às compras. Depois de encarar filas, escolha de produtos, marcas preferidas, pagamentos, guardo as sacolas na mala do carro e resolvo tomar um deforete. Sento-me no corredor do Shopping Plaza de Casa Forte e vejo as pessoas transitarem à minha frente. Gosto do exercício de observar, provavelmente um vício de pesquisadora. Os detalhes me seduzem, confesso a minha vocação para vigiar a vida. O rosto, as roupas, o andar, o jeito de ser, as conversas paralelas... Tudo isso me ajuda a compreender a humanidade. Somos o espelho do que vemos, os reflexos se assemelham, uns mais, outros menos. Eu me incluo entre a multidão anônima.
Uma mulher, de uns quarenta anos, gesticula e fala, há qualquer coisa de urgente no seu desabafo. Às vezes, gagueja, mas repete insistentemente “não quero mais, acabou”. A amiga, ouvinte, silencia. Discreta, não emite qualquer opinião, acata a escuta. E as frases se acumulam numa cadeia incessante. Ouço a sua história em frações de minutos: casada, dois filhos adolescentes, o marido pouco se preocupa com a família; boêmio, leva uma intensa vida noturna, acorda mal-humorado, sai para o trabalho e retorna alta madrugada. Ela se sente sozinha, cuida da casa, dos meninos, avalia-se excelente dona de casa, sabe dar as ordens, ajuda na limpeza e não poupa esforços para manter um lar harmonioso. Bonita: cabelos cacheados, pretos, cílios curvos, volumosos, pele acetinada, alva, bem cuidada, lábios grossos, repolhudos, corpo esguio; sua imagem lembra uma foto de propaganda de cremes femininos, hidratantes. E, no entanto, a beleza destila palavras duras, ressentidas, magoadas.

Desvio o olhar para descansar da sua dor. Adiante, um rapaz brinca com o filho; a esposa grávida, os dois se entendem com carinho. O filho pede uma camisa que vê na montra, logo adquirida na loja próxima. O pacote não demora a ser rasgado, a impaciência não permite aguardar por uma hora especial para vesti-la; então troca-a pela que usa, e, pronto, contenta-se com a roupa recém presenteada.


Ao lado direito, uma senhora de cabelos brancos conversa com a vizinha, permutam ideias, uma e outra aparentam a mesma idade. Falam uma linguagem amena, de netos, sobrinhos, maridos, a vida latejando no cotidiano... Discorrem sobre as regras da sociedade, as mudanças repentinas, um jogo interativo com atores mais ágeis e, por vezes, menos verdadeiros. Pelos comentários são mulheres instruídas, capazes de criticar com serenidade.


O corredor está cheio de passantes, bancos ocupados, homens e mulheres carregam embrulhos, a vida parece fervilhar em uma pequena passarela. Fisionomias sérias, risos largos, testas franzidas, lábios em movimento resumem um cenário comum, a fotografar uma tarde de sábado, um sábado a mais no calendário do tempo.


De repente, uma jovem, Maria, Cristina, Ana ou de um nome qualquer, fala ao celular. Desliga com uma certa veemência. Torna a ligar. Na bolsa a tiracolo, outro celular toca. Ela se apressa para atender. Agora são dois em suas mãos e a perícia em lidar com os aparelhos me chama a atenção. Não se arrelia em dominá-los na fúria da comunicação. Nada altera o hábil mecanismo. Manda torpedos, lê mensagens, disca, redisca... Alheia ao derredor, concentra-se no fetiche que carrega. Outra jovem, mais nova que ela, mostra-lhe sua última aquisição, um celular pequenino que exige um estilete para manuseio. Em poucos segundos, desvenda os segredos da Esfinge. Um terceiro jovem, de camisa de malha vermelha e calça jeans, agrega-se às duas, de posse de mais três celulares. Distraio-me com a brincadeira da tecnologia e me espanto com a sedução por aqueles comunicadores tão potentes. O mundo mudou, bem sei, sinto-me uma simples espectadora, a arregalar os olhos diante de tantos avanços. Sou à antiga, ainda me apetece o bate-papo pessoal, o olho no olho, o toque. Celular, com parcimônia, para recados telegráficos.

A mulher falante continua o longo desabafo, o menino de camisa nova corre por entre pernas alheias, as duas senhoras de cabelos brancos mantêm viva a conversação, os jovens disputam tecnologias recentes... Eu sigo o caminho de casa como alguém que assistiu a um filme com personagens díspares.

O filme da vida de todo dia.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ah! As coisas miúdas...

Fátima Quintas


As viagens imaginárias me levam ao lugar que eu quero. Penso, sigo, levito sobre caminhos por mim aquarelados. Outro dia, uma amiga disse que o sonho dever ser grandioso, imenso, maior do que a nossa imaginação. Não consigo devanear para além do que imagino. O ponto limite é o voo da inventividade. Alcanço um limiar que se insere nos laços das circunstâncias, ainda que tudo esteja dentro de mim. Não fora. Acomodo os anseios nas gavetas perras e trancadas do inconsciente, quase sempre escondidas nos espaços abandonados, de modo a evitar contatos freqüentes. Às vezes, o pequeno se transforma numa amplitude sem tamanho. Gosto do simples e das coisas miúdas. Quando vejo uma rosa maravilho-me com suas pétalas aveludadas, vermelhas, cor de chá; pouco importa, o que vale é cada retalho que enxergo. Meus olhos veem o que pressinto. Assim não disponho de barreiras à minha frente.

E, no entanto, o tangível não representa a minha força interior. Toco no que sinto, o apenas palpável serve de linha de partida para as fantasias. Daí voar pelo mundo afora. Vou. Estou sempre indo como uma andorinha que procura a primavera, depois o verão, e retorna, a depender do ritmo das estações. Retenho nos olhos e na mente a capacidade de alumiar dias e noites. Por incrível que pareça, as noites clareiam os meus olhos, vejo melhor sob a penumbra, os castiçais acesos me bastam. A chama das velas oferece a luz de que necessito. Fachos histriônicos me encandeiam. As sombras permitem uma multiplicidade de visões, algumas indefinidas, outras definidas, todas permeadas por suaves intersecções. E entre imagens aladas transito no universo sensorial. Cabe-me velar pelos sentimentos, então, alimento a fonte dos desejos. E são tantos!

Vivo em alerta na tentativa de apreender o que há de menor no entorno. Amo os detalhes: mesa posta, talheres enfileirados, copos a cintilar, a pequena gota d’agua que desce no cristal transparente, quase minúscula; o seu movimento é mínimo, mas eu enxergo a lentidão de um pingo vazando pelo vidro exterior. Assisto à leveza do que parece invisível. Não ouso mexer em nada, vejo apenas. E vejo um copo sem cor, igual a todas as imagens límpidas, puras, claras.

Ao centro da mesa outros pingos repousam sobre as frutas que adornam a bandeja de prata. Exalam um intenso frescor. O círculo sem diâmetro mensurável fragmenta-se na superfície espessa da laranja, da goiaba, da maçã, da pêra... Ah!, como as coisas miúdas me agradam!...

Agigantam-me pela fragilidade. Nem conheço a minha altura quando percebo o pequeno. Assim, permito que a imaginação me torne fortaleza inabalável. Em átimos de segundo, o relógio gira e gira e gira... O tempo, esse desconhecido, vai se acumulando na sequência das frações mínimas. Se o tempo existe por sobre ínfimas camadas que não assimilo, o que dizer do meu pensar fluido, veloz, dinâmico e etéreo? Diáfano, sem medidas, porque apto a absorver tudo que me rodeia. Sobretudo os volteios diminutos.

A gota d’água continua migrando sem saber para onde. Quantas semelhanças se somam entre a gota d’água e eu? Não sei responder. As perguntas são sempre difíceis, reclamam prodigiosa intuição. E ao formulá-las, acabo me perdendo no que pretendia expressar. Mas a imaginação não rouba de ninguém o prazer de se fazer matéria concreta. Quantas vezes a criatividade se metamorfoseia no real! É uma questão apenas de exercício de abstração.

Das coisas miúdas extraio a substância da vida. Elas me conduzem ao sonho e a tudo que idealizo. Em algum momento assinalarei os pequenos nadas do cotidiano. Pegarei o lápis, o papel e começarei a definir pausadamente a relação, captando o que em volta de mim se delineia. Sem hierarquia. À vontade. Como se a duração do sonho começasse pela gota d’água ou por mim mesma, que sou tão pequena, equivalente às coisas miúdas que ninguém percebe; porém, dotada de uma enorme imaginação. O que mais posso almejar?

E penso e sonho e caminho e deslindo a gota d’água e não sei para onde vou, sequer sei o que sou.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

A DIFÍCIL ARTE DE ESCREVER

Fátima Quintas


Tenho medo da página em branco. Assustam-me as folhas desérticas à espera de palavras ainda não concebidas. O receio aumenta quando a consciência do dizer se instala, censura que limita a criatividade ou que faz latejar em veias pulsantes as ambiguidades de cada um. Escrever é um gesto de ousadia, revela um certo desatino, uma quase loucura. Afinal, que dirá o leitor diante de palavras com aparente nexo ou propositadamente desarticuladas? Faulkner (1897-1962) não se preocupava com regras de pontuação, menos ainda com explicitações temporais. O tempo era o presente que se metamorfoseava ao seu bel prazer. Joyce (1882-1941) explorava a musicalidade em uma escritura de altos e baixos, trechos autônomos e distantes de previsíveis linearidades. Machado de Assis (1839-1908) se enredava numa fina ironia; crítico acirrado, perscrutava os variados matizes de uma sociedade convencional. Guimarães Rosa (1908-1967) adotava um léxico próprio, com termos atávicos, criados por ele ou garimpados em pesquisa profunda, tais, que ensejou dicionários em torno da sua obra, notadamente “Grande Sertão: veredas”. Clarice Lispector (1920-1977) alertava: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. E Manuel Bandeira (1886-1968) decretou: “Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado/ abaixo os puristas/ Quero antes o lirismo dos loucos/O lirismo dos bêbados/O lirismo difícil e pungente dos bêbados”.

Cada escritor busca sua libertação, assumindo o compromisso apenas de alongar-se em retratos simbólicos. Escrever é preciso. Quão complexo, todavia, ser original! E tudo parece acabar em repetições, em idéias que outros já dominaram, na arte quase impossível de inventar. A narrativa exige pessoalidade e um grande manancial de antevisões. Por isso, o escrever mexe com a alma, exaurindo-a até o limite do suportável. Só aí a palavra ganha a verdadeira transignificação. Lembro de Adélia Prado, quando comunica sua inquietação ao olhar para uma pedra e vê-la uma pedra — então, afirma não se encontrar na hora de escrever. É exatamente a subjetivação do olhar que estimula a inspiração. Uma pedra pode ser uma pedra, mas pode não ser. Melhor concebê-la uma metapedra e dela extrair o que a fantasia será capaz de inferir.

Um texto habilmente elaborado sugere, jamais impõe conclusões. Cabe à imaginação de quem lê a construção e a desconstrução do lido. Isto me recorda a acurada escuta das novelas de rádio na fase de criança, lá pelos idos de 1955. A sonoplastia levava a mundos surrealistas. As emoções se desdobravam além do plausível; tudo se desenrolava em contextos ocultos, nunca visualizados, mas infinitamente imagináveis. A literatura se aproxima desse cenário, o seu domínio é o do implícito: deve conter a sonoplastia do não visto. É exatamente o jogo de palavras numa afinada partitura que possibilita os devaneios da significação, devaneios particularizados em cada autor e em cada leitor. Uns veem de uma forma; outros, de outra — a narrativa, portanto, se multiplica em captações individuais, metaforicamente abstraídas.

Se a sonoplastia transmite sons tonitruantes ou melodiosos, a cenografia das palavras ondula entre o que deve ser dito e o que há de se omitir. A luta do escritor consiste na escolha. Quantas vezes levamos dias e dias para encontrar — muitas vezes sem sucesso — a forma adequada à frase inacabada! O escritor torturado nunca se satisfaz, um permanente angustiado, a perseguir o arremate que nunca chega. Ainda bem. A linguagem não se conclui, escapa de soluções simplistas, perdura ao longo do tempo numa caminhada eterna e eternizante. O pensamento, se possui estilo e beleza, não tem época. “Os Diálogos” de Platão são belos e consagrados na sua leveza artística. Nada os maculou nem os maculará, pois o presente, seja ele qual for, consolida-os como expressão estética.

Escrever reclama sofrimento, e muito. O prazer experimenta-se depois do texto estruturado. E, assim mesmo, ancorado em dúvidas, incertezas e inseguranças. Há uma aliança indissociável entre silêncios e frases em ruptura. Silêncios que selam mistérios e pausas da literatura. E qual a palavra do silêncio?