segunda-feira, 1 de setembro de 2014

CARTA A RENATA CAMPOS



Confesso que hesitei em escrever este artigo. Não temos uma relação de intimidade, porém sinto-me envolvida por um sentimento de tamanha dor e perplexidade que me encoraja a abraçá-la com fé e esperança. Às vezes, percebo-me impulsiva, mas perdoe-me, Renata, o jeito de ser: não consigo segurar a emoção; as palavras jorram num gesto alheio a mim. Então...  
Era uma quarta-feira como outra qualquer. Acordei no horário de sempre, mas estava apressada para finalizar alguns trabalhos iniciados. Sentei-me ao computador e trabalhei a manhã toda. Almoço na mesa, começava a deliciar-me com a refeição rotineira. De repente, o telefone tocou: uma amiga gaguejava do outro lado do fio. O que aconteceu... o que aconteceu... Eduardo Campos falecera em acidente aéreo. Não acreditei. Liguei a televisão, os fatos começavam a se delinear ainda desencontrados. A cena era arrepiante. Uma bola de fogo no ar, diziam os moradores do bairro de Boqueirão, em Santos. O avião despedaçara-se.
Face devastada, minha alma sofria. Eduardo Campos abruptamente se encantara. Feneciam seus tão lídimos propósitos, ainda que a determinação, o tino político, o otimismo estampado no rosto, olhos verdes/azuis, brilhantes como se fossem de cristais, riso permanente, manejo nas articulações sociais se perenizem. Perenizam-se no líder, no talento mobilizador, no idealismo transfigurado no Sonho de aglutinar ações em torno de um projeto político renovador. O carisma ofertava-lhe o escudo da perseverança, da arte do fazer humanista, da luta aguerrida por um país melhor — “Não vamos desistir do Brasil”.
            Como sabia lidar com as emoções! Tanto as políticas como as familiares. Sobretudo as familiares. É exatamente neste ponto que almejo me deter. Se político nato manteve-se em todas as horas, Eduardo jamais relaxou a ternura de pai extremado e marido exemplar. E você, Renata, a mulher em quem depositou a confiança do diálogo nas escolhas e decisões mais importantes; recatada, ao seu lado, de mãos dadas, pensamento uníssono; o mesmo curso de Faculdade, Economia, as mesmas vontades, os mesmos quereres. Sempre me chamou atenção o lado coeso dos laços domésticos que conseguiram conquistar: amaram-se, com amor absoluto, e amaram a todos que rodeavam o nicho sagrado da casa. Eduardo, apesar da agenda transbordante, jamais relaxou o apego aos filhos e à querida esposa. Havia uma fragrância de carinho, germinada desde os tempos de adolescência. A valentia e a coragem com que hoje, Renata, você vem conduzindo a tragédia que abalou o Brasil, destroçada por dentro, sabemos, mas aparentemente firme, dotada da fortaleza dos sábios e do inquebrantável compromisso em dar continuidade aos passos do homem-amado, deriva da solidez de raízes verdadeiras e hercúleas, plantadas lá atrás: você, com 14 anos; ele, com 16. Nada brota do vazio, a crença no renascimento das ideias necessita de uma origem alentadora, edificada sobre pedra. A densidade familiar resulta da agudeza dos espíritos nobres, assim, Renata, a canção da serenidade e da resistência explode.
            Tudo parece convergir no sentido de uma comunhão que se prolonga em atos subsequentes: você é filha do meu querido amigo, Ciro de Andrade Lima, homem de fé inabalável, médico voltado para o social, íntegro nas ações e na ânsia de ajudar ao próximo. Platão já apontava o belo e o bom como máximas da humanidade. Naturalmente que o equilíbrio interior não desponta sem um mastro de sustentação. Há todo um processo de evolução na mística do amor. Eduardo, Renata, Maria Eduarda, João, Pedro, José e Miguel fazem parte de uma estrutura egressa do afeto. Aí reside o vigor da construção de sólidas personalidades. 
            Este é um texto de reverência aos afinados acordes da sua família. Nele, procuro exaltar a intensidade dos elos mais íntimos. Um amor eterno. Existe uma aura, a resplendecer dessa gravura iluminada. Se todos compreendessem a significação de um alicerce doméstico bem fortalecido, o mundo seria humanamente humano.
            A morte precoce de Eduardo Campos, minha cara Renata, transformou-o num Mito, e volto a citar os gregos, agora, Menandro: “os deuses amam os que morrem jovens”. Fique certa de que o silêncio dos mortos fala mais alto que o grito dos vivos.           

Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br

Grito mudo



Como diz Drummond “Perdi o bonde e a esperança./ Volto pálida para casa”. Mas não posso deixar de bradar o meu desespero. Há algo de estranho entre os homens. Estarei sozinha na explosão interior? Creio que não. Olho o calendário, o dia, o mês, o ano. Estamos em 2014, a população da terra alcança o patamar dos sete bilhões, a rotina rebenta num frenesi insuportável, o chão treme ao impacto de tantas pegadas, “O bonde passa cheio de pernas:/ pernas brancas pretas amarelas,/ Para que tantas pernas, meu Deus, pergunta meu coração.”
O mundo se torna cada vez mais superficial, alheio aos apelos humanitários: valores inexistem, sentimentos se destroçam, honestidade se discute, a ética se adjetiva, cortesias desaparecem, o imediatismo impera... Olhar para o lado e avistar o outro é coisa do passado; importa a celeridade do ver e não enxergar. E a roleta da penúria moral se acentua, à medida que a vulgaridade usurpa o espaço da reflexão. Refletir para quê?, se tudo está à mostra e à venda. Nada custa caro, a honra, a integridade, a decência têm preços sem inflação. A sociedade de hoje curva-se à venalidade. O que é o bem, o que é o mal? Hanna Arendt já advertia para a banalização do mal. Viver simboliza acumular vitórias e mais vitórias, até a exaustão do sucesso. Tenho medo da mentalidade vigente e recuo diante da multidão embotada por princípios distorcidos.
            O ato de pensar se afasta da humanidade. Prevalece a ganância por uma escalada ao poder. A visão materialista se apossa das pessoas e “ter” corresponde à glória do pódio. “Ter” e não “Ser”. A patologia social embrenha-se nos cantos e recantos mais longínquos; pior, aqueles que se recusam a participar do redemoinho da insensatez sofrem a exclusão dos ingênuos. A mediocridade tem parentesco próximo à soberba, ambas andam de mãos dadas, a alfinetar a jactância com malditas persuasões. Ora, se nada é duradouro, por que perder tempo com ponderações mais profundas? Ludibriar faz parte desse palco histriônico: luzes, coreografias, matizes berrantes auxiliam a anestesia social; embriagada pelo individualismo e pela insensata altivez, a humanidade caminha.
            O capitalismo avança com suas garras sedutoras. E o mundo gira; mas tem girado em torno de um mesmo tema: a banalização. Com exceções, evidentemente. A juventude se enreda em altos decibéis, e cada acorde estrondoso consigna o atordoamento de um grupo devotado à mediocridade. Sair de casa é enfrentar o bulício de vozes, de carros que buzinam, vitimados pelo caos do trânsito; de restaurantes inebriados por músicas estridentes; de rádios ligados em volumes inaceitáveis; de vitrines reluzentes, a fascinar olhos desatentos... O que se passa?
            O Recife parece ter perdido o seu ar heráldico para se deixar emaranhar numa rede de insignificâncias. A elegância, a educação, a discrição, a gentileza, a valorização do erudito, sem esquecer do popular, a magnanimidade da sabedoria... são lembranças em extinção. E, no entanto, temos uma tradição digna de reverências. Mas, não. Pichar muros, ignorar ou ultrajar monumentos, desconsiderar os mais velhos, abandonar rituais, desprezar o patrimônio moral e material equivalem a ser moderno, a estar na ordem do dia, a endossar a fileira dos que aplaudem a decadência da cultura. Oswald Spengler já há muito anunciava tal abismo. Não, não é possível cruzar os braços; as coisas não vão bem. Enquanto a ordem familiar e social não se conscientizar da sua própria ruína, nada poderá ser feito.
            Sei que sou considerada antiga, apegada a valores tradicionais, vencida por sonhos quase delirantes; mesmo assim, uso a palavra como único meio de alerta, palavra que também se encontra enfraquecida, anêmica, quase agônica. Tenho certeza, entretanto, que ainda é hora de repetir Chesterton: “Não apenas estamos no mesmo barco, como todos sentimos enjoo”.

Fátima Quintas é presidente da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br