terça-feira, 9 de novembro de 2010

No lusco-fusco

Fátima Quintas



O acordar traz sensações diversas. Há dias que a gente amanhece leve, a voar como um pássaro, planos sólidos, esperanças confiantes; as pálpebras se abrem diante de um céu azul, limpidez no horizonte, estado quase de levitação. Noutros, as emoções diferem: os olhos pesam, a natureza parece estática, o sopro das reminiscências soa mais alto. Somos contraditórios dentro de uma coerência cotidiana. Pois é, hoje despertei um tanto escura.

Há fachos de penumbra em mim neste instante. Não adianta enganar-me: a tropicalidade, com o excesso de raios luminosos, me turva. O sol clareia demais os sentimentos, tornando-os enodoados; a minha timidez opta por guardá-los em gavetas cerradas. Prefiro reservá-los nos nichos do inconsciente que devastá-los na ostentação dos holofotes. O mundo se mostra tão truculento que tenho receio do seu aparente fausto. As noites, essas me recebem sob o agasalho da recatada intimidade. Delicio-me com os fins de tarde, quando a luz perde a imponência maior. Pode parecer estranho; mas é no escuro que meus olhos fisgam o imperceptível.

Acordo imbuída do prazer estelar. E, no entanto, o quarto de dormir se deixa banhar pelos feixes do sol. A janela, devasso-a para respirar o oxigênio da renovação. Tenho sede de vida; vou vigiar o lusco-fusco com o intuito de entregar-me por inteiro à sabedoria dos despojados. Antes, todavia, há muito o que fazer: irei ao banco, pagarei contas, despacharei os papéis que se avolumam no bureau, aborrecer-me-ei com o gerenciamento do dia. Caminharei de um lado para o outro a resolver detalhes burocráticos: o corpo se cansará na rede imbricada das relações formais e, depois, o cansaço da labuta me impelirá ao claustro — ao quarto de estudo. Apagarei as luzes, acenderei uma vela, olharei atentamente para a chama, então rapidamente me recuperarei dos inúteis afazeres.

Os relógios se consumiram na inapetência de atos administrativos. Os olhos se gastaram espiando homens e mulheres devorados pela gangorra da burocracia. Estou a salvo. Tomo um banho. Purifico-me. O ritual do sossego se inicia: no silêncio da noite e na placidez da vela. A essa hora não ouço os ruídos das construções circunvizinhas, a campainha da porta, a velocidade dos carros, o burburinho de vozes em conversas desinteressantes, as discórdias do mundo... Escuto apenas a quietude da lua se escondendo ou despontando à meia-noite.

Não penso em nada. Quero esvaziar-me das nódoas de uma insípida manhã. Sinto-me completa na liturgia da vela; é tempo de apreciá-la. A chama se transforma de minuto a minuto, constante mutação, um vir-a-ser ao ritmo do filósofo Heráclito, tudo em plena circunvolunção, e agora, e depois do agora, e o mesmo agora, e o presente dilapidando o instante, e Clarice Lispector a se perguntar pelo “é”...

Fecho os olhos. Enxergo-me. A vela continua na cadência do fogo. Mergulho na ausência das coisas para depois absorvê-las com maior intensidade. Foi não foi, é necessário uma faxina interior, rasgar as emoções com a intenção de substituí-las. Qual o quê! Não serei capaz de anular minhas lembranças; por mais que me esforce, é vão todo o propósito. O inconsciente se encarrega de reter o que quero e o que não quero. Um jogo de subjetivações para o qual me doo com um certo gozo.

O tempo firma a madrugada. Durmo ao embalo de um vazio proposital, ainda que a cada dia cresçam as minhas ressonâncias. E não há como escapar da menor recordação: chego à conclusão de que o meu problema é tão somente esquecer... Impossível. A memória define minha identidade. O resumo do meu “eu” corresponde ao espaço da evocação. Assim, em um poço de oposições, vou edificando dias e noites.

Amanhã, acordarei mais clara e escreverei sob a ode das cores, até berrantes, quem sabe? Hoje estou escura. Ao modo de Drummond: “estou escuro, estou rigorosamente noturno, estou vazio”.

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