quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

Mauro Mota, uma homenagem

Fátima Quintas





Novembro é um mês que aumenta a minha saudade, ao lembrar da morte do poeta Mauro Mota — 22-11-1984 —, um dos maiores de Pernambuco. Na ciranda da vida moderna, a tendência, aliás, lamentável tendência, é esquecer escritores e antepassados que deixaram herança literária, sentimental, afetiva, parte da nossa biografia. Se o tempo gira numa célere velocidade, dias se encurtam, meses se evaporam num piscar de olhos, anos já não dispõem do vagar de outrora... É preciso reavivar a memória e cultuar os entes queridos. Mauro Mota pertence ao mundo. Transcende épocas. Ultrapassa a pobre cronologia dos calendários vencidos. Suas palavras, suas canções de amor e de morte, sua melodia escandida em belas mensagens se expandem no ar, qual borboletas que se metamorfoseiam, porém nunca fenecem na linguagem da magia. Os poemas mauromoteanos tocam a alma, afagam a pele, serenam o espírito e se eternizam em ecos cadenciados: “Vem vindo o vento violento/ praticar infanticídios./Mata as rosas em botão,/ rosas cobrem outras rosas/deixadas mortas no chão”.

Pensar a poesia de Mauro é debulhar a emoção latejante, o vento que assobia em tempestade ou em brisa candente, as rosas que baqueiam, os suspiros que emudecem ou os gritos que sufocam a garganta, a pedir para bradar sentimentos recolhidos. Pensar a poesia de Mauro é receber o aroma da nostalgia ou a ondulação do verbo ser em vasta plenitude. Pensar a poesia de Mauro é vê-lo de novo perto de mim, brincadeiras constantes, riso animado, ironia sutil, às vezes nem tão sutil assim, ainda que nunca ofensiva, mas versátil, espontânea, inesperada.

Sei que sou uma privilegiada porque convivi com uma plêiade de intelectuais que me ofertaram um legado intransmissível. Mauro Mota pertenceu a esse grupo de elite pensante, de sensibilidade à flor da pele, de percepção especial, a traduzirem-se em palavras expressivas, plenas de significação. “A chuva cai sobre o Recife devagar,/ banha o Recife,/ apaga a lua,/ lava a noite, molha o rio,/ e a madrugada neste bar./ [...] A chuva cai, desce das torres das igrejas do Recife,/ corre nas ruas, e nestas ruas, ainda há pouco tão vazias,/ agora passam, de capote, transeuntes/ do tempo longe, esses fantasmas de mãos frias”.

Do sobrado da Rua Amélia avistava Mauro chegando ou saindo, eu, na janela, tímida de juventude. Porte fidalgo, o dele, semblante tranquilo e aquele jeito todo seu de apreender o mundo. À mesa do jantar, o despojamento e a conversa bem afiada. Naquele sobrado o meu universo se enriqueceu com gestos e louvores de amizade. Ao fim da noite, a música clássica servia de pano de fundo ao sono que se anunciava. Longas conversas prolongavam-se madrugada adentro, o silêncio da noite, Mauro lendo poesia ou prosa. Recordo-me de um sábado em que recitou de cor Manuel Bandeira e depois começou a ler “Infância” de Graciliano Ramos. Lia, relia, comentava, mergulhava no texto.

Vez por outra, Marcos Vinícios Vilaça, acompanhado de Maria do Carmo, entrava de supetão, e o bate-papo se animava. A sensação se traduzia em horas que ali se estendiam para além dos minutos cravados no relógio. E a sala se ungia de literatura marcante. Havia mais que sabedoria espalhada no ar; era o tempo da liturgia estética. As vozes se misturavam, mas a elegia de Mauro se fazia ouvir por todos os lados. Um dia me perguntou: “O poeta no momento de criar encontra-se feliz ou triste?”. Olhamo-nos silenciosamente.

A recordação ilumina o passado com fachos vibrantes. As imagens agora nítidas perdem qualquer nebulosidade. Novembro não é mais saudade. É lembrança. Ressurreição. Singeleza evocativa. O poeta está vivo, vivíssimo, a repetir em voz branda: “Debruço-me de fora/onde havia janela./Nuvem ou casa extinta?/ Lá estou como eu era”.

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