terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Os poetas, um poeta

Fátima Quintas






A poesia representa o clímax da literatura. Nela encontramos as metáforas da vida e toda a simbologia do que se vê e do que não se vê. O poeta transfigura a realidade, tornando-a suportável à sensibilidade dos homens. É preciso versejar as durezas da rotina para acreditar que a ordem do real escapa aos nossos olhos; então, os poemas adquirem a verdade que se deseja imaginar. Que o sonho vença a inexcedível concretude. E só. Estou exausta dos modelos pré-fabricados, assim como Manuel Bandeira estava farto dos purismos limitantes.

A palavra pode tudo, desde nomear para dar sentido aos objetos até enganar os fantasmas, mistificando-os. Poetas, leio-os todos os dias. Não consigo afastar-me dos seus mistérios. Gosto de percebê-los driblando a vida ou de senti-los na catarse intensa. E deparo-me com “Desencanto” de Manuel Bandeira: “Eu faço versos como quem chora/ De desalento... de desencanto.../ Fecha o meu livro, se por agora/ Não tens motivo nenhum de pranto”. Não, Bandeira, não fecharei o livro. Necessito folheá-lo para apaziguar as intermitências da alma. Vou em frente. Sei que a tuberculose o atormentou, encontro no acervo epistolar da Fundação Gilberto Freyre cartas e mais cartas endereçadas a Gilberto Freyre, falando da doença e prevendo uma morte precoce, bem perto, à porta. E, no entanto, viveu oitenta e dois anos (1886-1968), sempre afligido pelo espectro da enfermidade. Em termas especiais, cidades de clima seco, recomendações médicas e a “indesejada das gentes” rondando, rondando, rondando... E, você, Manuel Bandeira, a gritar as pulsões em versos belíssimos. A dor o impulsionava a jorros intimistas. “A vida é um milagre./ Cada flor,/ Com sua forma, sua cor, seu aroma,/ Cada flor é um milagre”.

A ansiedade da escrita lhe roubava as horas e não é à toa que o seu primeiro livro (1917) tenha recebido o título de “A Cinza das Horas” — impresso nas oficinas do Jornal do Commercio, 200 exemplares. Escrito, conforme disse, “para iludir o sentimento de vazia inutilidade. Este só começou a se dissipar quando fui tomando consciência das ações dos meus versos sobre amigos e principalmente sobre desconhecidos. Uma tarde voltei para a casa seriamente impressionado de ter ouvido, na livraria José Olympio, Rachel de Queiroz me dizer: Você não sabe o que a sua poesia representa para nós”. O tempo chamuscado de cinzas, o seu. Mas pleno de criatividade, como se a descoberta das coisas lhe trouxesse o ânimo imprescindível à trajetória de algum futuro. “Fui menino tuberculoso, nada sentimental. A doença, porém tornara-me paciente, ensinara-me a humildade, o que estava muito certo. Infelizmente gerou também em mim um sentimentalão”. Um sentimentalão que se exprimiu poeticamente, permitindo conduzir os dias, contados um a um, à maneira de Nietzsche, quando alertava que cada minuto deve ser transformado numa obra de arte. Aos grandes homens a doença não os apequena, pelo contrário, engrandece-os: Manuel Bandeira, Nietzsche, Max Weber, Freud, Virgínia Woolf (com eterna depressão, a ponto de suicidar-se)...

Em março de 1933 se viu forçado a abandonar a residência à Rua do Curvelo, onde morou entre 1920 e 1933, apegando-se ao seu canto felinamente, um gato recolhido ao aconchego dos prazeres mais recônditos. Mudou-se para a Rua Morais e Vale, no coração da Lapa. Não se acostumou à nova paisagem, ocasião em que escreveu o belo poema “O Beco”, a lamentar a convivência do refúgio anterior: “Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?/ — O que eu vejo é o beco”. E quantos becos nos deparamos ao longo da existência!?

A poesia de Manuel Bandeira nasce de um sofrimento diário. Conhecia o abismo bem próximo, aos seus pés, bastava uma pequena escorregadela, e pronto. Por isso tinha pressa de apreender o mundo, apreendê-lo através de emoções que o inspiravam, e dele exigiam a urgência da escrita: “Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo sempre como que provisoriamente”. A morte nunca o ceifou. Manuel Bandeira, eterno, eternizante, eternamente Manuel Bandeira.

Um comentário:

  1. Se é você que se esconde entre essas palavras dedo Manuel Bandeira, saiba que te vi e, por coicidência: me vi também. Belo texto! Peixoto, um Pernambucado exilado e solitário em Rondônia.Se interessar veja: "Diário do Exílio" no meu blog.
    http://moisespeixoto.blogspot.com

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