quinta-feira, 16 de outubro de 2014

A ALDEIA UNIVERSAL DE CÍCERO DIAS


A gente vai, volta, faz pesquisas e mudanças, mas sempre redescobre a força das raízes e da infância. É inútil o artista querer fugir à evidência dessa realidade intemporal. (...) Jundiá permanece como a capital da minha vida, em Paris ou onde quer que me encontre (Cícero Dias).


            No município de Escada, a 53 quilômetros do Recife, um menino trelava no canavial, deliciando-se com a cor vermelha do massapê oleoso e pegajento, com o amarelo-ouro de um sol que não se resignava à sombra do crepúsculo, com o brilho de um verde que se espalhava por um extenso canavial.  Dessas cores tão tropicais, vívidas, estridentes — ao contrário de Gaughin que precisou “exilar-se” na Tailândia para sentir a pureza cromática —, Cícero Dias absorveu precocemente, ainda nos verdes anos de criancice, a sua identidade pictórica, poética, humanística. E jamais negou o pacto selado na infância: uma aliança que, como todas as precoces alianças, transbordavam de si mesmas — o verde do canavial em conluio com o verde do mar. Um e outro em perfeita sintonia. O mesmo verde amado-amante de Federico García Lorca — verde que te quiero verde.
            Tudo aconteceu em Jundiá, nome indígena que significa peixe de água doce — yundi = a espinha e á = cabeça. Os malabarismos infantis o marcaram de forma indelével: fábulas, histórias mágicas, mentes povoadas por chamas mitológicas; moças bonitas com seu pisar descalço, pernas a receber o húmus da terra bem colado à epiderme; cantigas em refrão a ensinar desde então os traquejos da vida. Do núcleo primevo emanaram as fantasias de um pintor que se notabilizou nos seus inícios (1929) pelo carismático painel intitulado Eu vi o mundo... Ele começava no Recife. Esta a verdade ontológica de Cícero Dias. E de todos nós. O mundo começa e termina nas idéias lendárias da origem. De Jundiá, a menor aldeia do universo, brotavam os passos para fronteiras outras.
            O mundo nasce onde a gênese se firma, não importa se no município de Escada ou nas frenéticas Avenidas de uma Paris carregada de luz e de vanguardismos. Cícero nunca desprezou o sentimento de artista engajado nas causas sociais — justiça e liberdade. O jeito de menino aperfeiçoou-lhe a capacidade intuitiva de quem está disposto a conviver com o humano como parte integrante dessa humanidade. E as reminiscências lhe serviram de calço à estrutura de uma personalidade impregnada de cor e forma como simbolismo maior da existência. O seu universo sensorial revela-se na estética da emoção e na beleza da arte, por vezes até impactante — afinal, a arte não tem pecados; nele, as manifestações interiores desfilavam na firmeza das tintas, um dégradé que lhe enchia os olhos e a alma, ou nos recursos de uma paisagem que se transfigurasse nas sendas imberbes da meninice. De Jundiá para o infinito. De Jundiá para além de si. De Jundiá para a transcendência.    
            Pintor modernista e regionalista, adepto aos atavismos, às crendices internalizadas nos desvãos do engenho, não desprezou as brincadeiras inocentes ali experienciadas, assim como as malícias de um adolescente que já assegurava a sua identidade em glebas da Mata Sul de Pernambuco. Aos 13 anos, mudava-se para o Rio de Janeiro, em regime de internato no Colégio São Bento, sem deixar para trás as recordações de um tempo germinador. Nada modificava o caráter já formado daquele que caminharia mundo afora, carregando a saudade da cama de Jundiá, do assoalho feito de tábuas de madeira-de-lei, das aulas de pintura de tia Angelina. De que mais necessitava Cícero para compor a luta visionária, as fases inspiratórias, o destino de menino de engenho?
            A sua universalidade advém justamente de um regionalismo saudável e genuíno. O pluralismo validava um nome que se inscreveu nos muros de Jundiá alongando-se até Paris, cosmopolita, celeiro de movimentos literários, musicais, artísticos. Conviveu na intimidade com Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Ascenso Ferreira e, juntos, consolidaram respectivamente no ensaio, na prosa, no poema, na pintura a visão de um ethos representativo do retrato da nordestinidade. A arte, a sua, emergia do cheiro de melaço do amplo canavial para ganhar a dimensão universal.
            E a força da sua expansividade remonta aos sonhos preservados nos escaninhos da infância. As lembranças alimentaram o imaginário, tornando-o “um escravo da memória” ao transformar o passado em imagens significativas e metafóricas, pintura efervescente com saibo de açúcar e de doce, ao ponto, de jaca, ou com a inocência de mulheres entregues à sensualidade do sol tropical. O verde da cana a acasalar-se com o verde do mar — o mar do Recife, esse, sim, verde, verdíssimo — para transbordar no pincel inquieto de um homem enredado nos ícones fantasmáticos e dionisíacos dos tempos dos bangüês.
            Cícero Dias, o pintor do verde do canavial, do verde do mar de sua terra e “do céu mais alto do mundo”, o do Recife.          


Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br
Imagem retirada do site: http://wwwescadaresgatandonossahistoria.blogspot.com.br/2010/03/casa-grande-do-engenho-jundia.html

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