sexta-feira, 3 de março de 2017

A MULHER DA RUA NOVA




“Assim entro em várias casas,/ Através de várias ruas,/ Parando ante várias montras,/ Cumprimentando/Para um lado, para o outro...”
Rua Nova, um dia de semana qualquer. Nem recordo a data. Foi há algum tempo, na época em que as horas não me encurralavam; eu, descompromissada com o relógio,jovem, plena de esperança. O poema de José Régio me conduz a um passeio especial pelo centro do Recife:dezoito anos, cursando faculdade. Naquela tarde, tomei o ônibus sozinha e, sem rumo, desci na Avenida Dantas Barreto. Mês de julho, um tanto chuvoso, ou melhor, atmosfera nublada,ocasião propícia para um deambular sem destino. Mãos vazias, coração palpitando. De quê?
            Tomei a direção da Rua Nova. Transitei-a de ponta a ponta: entrei na Sloper, na Ethan, na Rialto...Cumprimentei pessoas conhecidas. Por fim, decidi visitar a Matriz de Santo Antônio, silenciosa, penumbrada, espécie de claustro, a abraçar um isolamento que não me dizia a que vinha. Sentei-me no longo banco, quase vazio; havia apenas uma mulher, olhando para frente, a rezar com a máxima contrição;sequer deu conta da minha presença. Fitei-a. Depoisolhei o teto, as paredes, o púlpito. A mulher permanecia imóvel.
            Uns trinta anos, cabelos pretos, nariz afilado, corpo magro, porte elegante. Assaltava-a um profundo sentimento de religiosidade; a prece rezada os lábios balbuciavam, ela acreditava no seu rogo. Havia fé no rosto plácido, anônimo. Terço à mão, os dedos “desgranavam” Ave-Marias e Pais-Nossos. Nada a detinha no monólogo sibilante.
            Do lado de fora da igreja, um homem vendia cachorro-quente e alardeava o produto. Outro, em posição oposta, exibia gravatas, bradando a beleza das listras e a qualidade da seda. Italianas. Importadas!!! Preço módico. Mais adiante, uma senhora expunha um balcão de bugigangas; as peças serviam para ornamentar colos ou braços femininos; ninguém hesitaria diante da estética dos colares e pulseiras. O zumzumzum aumentava ao embalo de vozes que barganhavam preços mais em conta.
            A uma distância pequena, o altar da igreja aplaudia a discrição dos que por lá se achegavam. A mulher ao meu lado suspirou por relaxamento. Guardou o terço na bolsa, enxugou uma lágrima, virou o rosto para me enxergar melhor e disse: “Você é tão jovem, mas tem um olhar triste. Não a tristeza que arranha o meu peito, essa não tem cura; é a minha sina. Moro aqui perto em um sobrado antigo, no primeiro andar; levo uma vida insignificante, não vou para lugar algum, trago a solidão a roer a alma. Venho à igreja todos os dias e gosto do burburinho da Rua Nova — os ecos reverberamcomo alimento da minhaexistência. Pela sacada do sobrado, vejo o mundo que se encerra no espaço da pequena rua. Namoros nascem, amantes brigam, homens e mulheres miram as montras, entram e saem das casas comerciais, vigiam-se sem conhecer; então, flertes irrompem e daí... Sou oca de vida; a Rua Nova é o meu refúgio. Frequento a igreja todos os dias, à mesma hora, peço a Deus o sentido do ser, e me basta”.
Gesto repentino, beijou-me a testa; se foi. Não me sobrou um segundo para dizer nada.
            No outro dia, voltei. Nunca mais vi a mulher da Rua Nova.

Fátima Quintas é membro da Academia Pernambucana de Letras.
E-mail:fquintas84@terra.com.br        


Um comentário:

  1. A Rua Nova me lembra mamãe ... ela sempre me levava, as compras na Loja Sloper, elegância e qualidade dos produtos, as vitrines. E os lanches na Confiança ... Um grande abraço, Eleonora Saldanha-Marston 13/Março/2017

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