quarta-feira, 24 de junho de 2020


CANSAÇOS, CANSAÇO
Fátima Quintas
Meu choro é contido; as emoções, também. As pernas denunciam a fadiga dos que andaram em estradas duvidosas: de barro, de areia, de massapê, de mato. Quantas léguas percorridas!... Protejo-me não me fazendo enxergar por ninguém. Assim escondo os infindáveis cansaços. Para que alardeá-los se não há quem possa socorrer-me? Agarro-me ao salvo-conduto que me garante o combate à artilharia cotidiana. Não almejo riquezas nem falsas exterioridades. Desprezo os excessos, os adereços ornamentais, as miçangas de brilho aparente. Insisto em garimpar diamantes em cestos vazados. “Meus pés vão pisando a terra/ que é a imagem da minha vida:/  tão vazia, mas tão bela,/ tão certa, mas tão perdida”.
Sou amante dos crepúsculos e das sombras enluaradas. “Eu ando sozinha/ ao longo da noite./Mas a estrela é minha”.  Para além do que vejo, debruço-me nas invenções que eu própria fabrico. Não tenho limites para imaginar. Ganho asas poderosas no vôo das fabulações. Serei tão etérea que não me desenho? Não faz mal. A invisibilidade tem as suas vantagens, metamorfoseia-me em varinhas de condão com capacidade de revolucionar as cercanias. Sinto-me feliz porque pássaro errante, migrando para plagas de endereços incertos por entre um céu azul e um galope quixotesco.  De longe, conhecer-me-ei melhor. Mas estou cansada. Tão cansada que acabo me fixando no mesmo lugar. As asas me podaram, já não posso alçar os delírios da juventude.  
 A lama oleosa se agarra aos pés, invadindo-me o medo de derrapar no vácuo. Mesmo que me sinta oca, sem linhas de interseção que preencham os instantes dos dias e das noites, ouso declarar em alto brado a minha vulnerabilidade.  Peço licença para falar. Mas que direi?  E a quem? Tudo já foi verbalizado, receio a ênfase na recorrência. Desconfio das exatidões dos silogismos. Opto por testemunhar-me tão-somente uma miragem: vez em quando relaxo a guarda e traço-me em esboço. A consciência de saber-me frágil fortalece os impulsos de acreditar em você. Mas estou cansada e as forças me impedem de ir à luta. Quero apenas amá-lo em solidão: um amor estranho e impossível. “Dói não poder dar mais,/ e amor que sobra dói,/ mas é amor, nunca se estraga”. Aqui estou eu, pronta, quase imolada no ato da entrega, à mercê da loucura que me habita. E ainda desafio os moinhos de vento para balançar o seu coração — tão petrificado em rochas de quartzo. Por que tudo isso? Até quando resistirei à íngreme escalada? O cansaço é maior do que eu mesma.
Desde o primeiro beijo ganhei a imortalidade... quem negará a verdade dessa frase? Peço mais. Muito mais. Essa volúpia insaciável me arruinará. Estarei sozinha na tempestade dos desejos? Quem a mim se aliará na prece confessional? Segredar é difícil, sobretudo no momento em que a humanidade procura, a qualquer custo, dissimular as fraquezas. Todos são vitoriosos, somente eu contabilizo batalhas perdidas. A soma aglutina colunas e mais colunas num inventário conturbado. Viro a página para começar de novo. Puro engano. Tento convencer-me que a vida é aqui e agora. Na primeira linha, assinarei a ousadia de chegar até você. Mas continuo tão cansada!...
 O meu tempo se gasta na procura das suas mãos. Chego a pensar que a vida é um barco abandonado e que o mundo corresponde a uma ilusão ótica, um distúrbio visual que me força a compreender o incognoscível. Ocupo-me dos sentimentos, não me sobram vagares para supérfluas diligências. Os outros como me imaginarão? “Quanto mais ando ocupada,/ mais alto o canto suspendo./ Por isso, quem não está vendo,/ pensa que não faço nada”. Levo a vida inflando a alma. De afeto. Ninguém suspeita das minhas intenções. Amar nunca deu lucro. Sou pobre, paupérrima de artificialidades.
Quero o abraço, o beijo, o toque. Tudo mais me é dispensável. Contento-me com pouco. Que nada! A minha ambição não se apalpa. Pura abstração num circo de ilusões. Sou uma trapezista em cima de fios prestes a rebentar. Não há rede de proteção. Mas o perigo me atrai. Jogo-me ao ar. Um tanto às cegas.  Estou tão cansada que nem o gesto de liberdade me serve.
Aceito a hesitação de um Ser indefeso, em carência existencial. 

Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas85@terra.com.br
   
     


4 comentários:

  1. Oi Fátima, boa tarde! Como vai? Tentei lhe enviar e-mail duas vezes mas diz que o mesmo é inválido! Teria outra forma de contato? Agradeço desde já e aguardo retorno!

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  2. Adoro seus textos! Me identifico muito.
    Grande abraço

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  3. Não me sinto sozinha e louca quando leio seus textos. Parece uma amiga que me compreende. Sinto acolhimento e consigo ver a vida com mais possibilidades...

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