quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Letra viva

Fátima Quintas




Preciso da literatura como preciso do ar para respirar. A ficção me acalenta com sua intricada urdidura e sua aura imaginativa. A liberdade se reduz ao voo da criatividade. Pensar sem barreiras permite que a alma desabroche e corresponde à janela aberta de ponta a ponta, sem divisórias entre o espaço da natureza e o espaço que me habita. Sou um bloco uníssono quando me disponho a olhar para fora e para dentro de mim, através de um diálogo íntimo e, por que não?, egoísta. Ler as entrelinhas diz do maior mistério da letra viva. E a letra só tem caráter intrínseco transformada em substância latejante, imersa na identidade própria e na sutil significação. Não há como fugir do implícito, nele reverberam as possíveis "verdades" da escrita. Clarice Lispector antecipava: "Mas já que há de se escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas". A vida só tem sentido imaginada, e não vivida concretamente. A ilusão ganha vigor pulsante. O jogo do dia e da noite serve de lastro às utopias inscritas e escritas no espírito. Então o valor da palavra se desdobra para além de si, alcançando horizontes longínquos, às vezes esfumados na nossa inspiração. E o caminho se perde no infinito do devaneio.

Quando Virginia Woolf quebrou os tabus de uma escrita limitante, assumiu a autenticidade de si própria. Não se deixou debulhar em parâmetros impostos, mas dilacerou as amarras que porventura a sufocavam. Escreveu em pleno gozo de sua saudável loucura - delírio suicida. Entregou-se de corpo e alma a um sonho impossível. O sonho foi maior que ela, arrebatando-lhe a vida. Nem por isso seus textos anularam a largueza de uma prodigiosa transfiguração. Perenizou-se. O ato de existir reclama um processo de transcendência. Se a escrita carimba o selo da constância, deve-se à letra o poder de conquistar uma lembrança que não esmorece com o tempo, porém vence a cronologia para galgar a duração de um signo eterno. A letra consigna a força que detém.

Guimarães Rosa se enredou num vocabulário original, quis lidar com palavras comuns e incomuns, ressignificou o nome mediante a capacidade de gestar um pensamento tão regional quanto universal. Suas frases vêm carregadas de belos enigmas: "A gente só sabe bem aquilo que não entende". "Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez ache mais do eu que a minha verdade". "Meu duvidar é uma petição de mais certeza". "Mente pouco, quem a verdade toda diz". "Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura". São as entrelinhas que dignificam a escrita. O explícito empobrece, banaliza o que deve se esconder, oferece-se sem cerimônias. Ocultar prenuncia a sabedoria daqueles que dominam o que dizem. Assim acontece com os poetas que metaforizam os versos e revelam apenas a metade das significâncias. Para que ir além? Basta caracterizar o não dito na simbologia do que se quer dizer. Então temos o verso incompleto e absolutamente completo.

Fernando Pessoa brinca com a nudez e com a reclusão das palavras: "A minha alma partiu-se como um vaso vazio./ Caiu pela escada excessivamente abaixo./ Caiu das mãos da criada descuidada./ Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso". A ficção é a verdade que conheço. Nem quero outra. Inventar me encoraja a viver, única forma que encontro para driblar as curvas acentuadas da estrada. Se me invento, revelo-me pelo avesso. E o avesso nunca mente, reflexo de um eu não lapidado, quase cru na essência, mais puro e menos danificado pela ventania ontológica. O que me salva e me condena são as entrelinhas, as hesitações diuturnas, a volúpia de criar novos cenários num picadeiro por mim construído. Há o riso, há o choro, há a expectativa, há a atenção... e a rede do circo não existe. Nem por isso o trapézio minimiza o perigo. As entrelinhas me acompanham no mistério e no mágico da letra. Ainda bem.

Um comentário: