quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

De lugares e saudades

Fátima Quintas





Chove. E chove. Os relâmpagos clareiam o ambiente com intermitentes fachos luminosos. Sinto a força da natureza numa noite aparentemente igual às outras. A diferença se faz no céu fechado, nuvens cinzentas, trovões a distancia e a claridade a faiscar luzes naturais. Vou à varanda para inspirar o cheiro da terra molhada, a detonar laivos de lembranças. Há alguma coisa de ancestralidade nesse cheiro tão presente e tão antigo. Não sei o porquê da remota evocação, mas a verdade é que a terra agrega a simbologia materna: a Mãe-Maior, útero agasalhador, fecundação.

Sinto o poder de um manto protetor quando me volto para sensações ligadas à terra. Sou urbana, mas a vida agrária me encanta, espelho de sentimentos mais puros, de relações pessoais, de amores mais verdadeiros, de carinhos frequentes e generosos. Gosto de remeter aos engenhos, a um passado que me aponta a luz do futuro. Passadismo? Não sei. Talvez apenas saudade. Sim, há em mim uma saudade infiltrada na carne, saudade difusa que não sei explicar. Não adianta enganar-me com outras referências, espio o futuro com olhos no retrovisor. Do ontem extraio o sumo da minha identidade. Os longes me fortalecem. Não gosto, entretanto, de revisitar os lugares por onde deixei pedaços de mim. Acode-me a sensação de profaná-los neste retorno nem sempre voluntário.

Tal profanação aconteceu outro dia quando visitei uma amiga que mora no velho casarão da infância. Altiva e um tanto intransigente, ela reage à fúria imobiliária e, assim, solitariamente resiste às suas próprias ruínas. Foi uma tarde devastadora. Lá chegando, deparei-me com um ambiente lúgubre, triste, sorumbático. O silêncio dos móveis me incomodava, cristaleiras e aparadores perderam a serventia — já não escutavam as nossas vozes, eram outras as vozes que algum dia lhes falaram. O imobilismo da sala reluzia sob uma quietude violada. E, no entanto, tudo estava lá. Faltava o tempo condizente aquele cenário. Não acredito em tempo morto dentro do critério da abstração. Imortal, sim, como superação do tempo apenas histórico. A cronologia daquela sala havia, contudo, transposto o calendário linear. O salto acontecera. Irreversível em se tratando de mensuração de ciclos de vida. A soma dos momentos, das horas, dos meses torna-se absolutamente irrecuperável. Não há como ignorar a dinâmica do processo; a decorrência dos dias exige mudanças.

O tempo corresponde à sucessão de momentos, um atrás do outro, em perseguição, em modo contínuo, com voluntarismo próprio, ele, o tempo, independente de qualquer imponderabilidade. E era exatamente este tipo de estranheza que em mim se apoderava na tarde da visita à amiga. A lembrança reconstrói o tempo de maneira etérea, jamais em materialidade. São os nossos pensamentos que o refazem numa imperativa circularidade. O sonho tem a cor do momento sonhado. O seu traçado se adapta a diversas perspectivas. Basta evoluir ou involuir em elaborações.
Na sala, apalpei vários objetos. Inertes, na feição de concretude, recusavam a invasão do toque. Aceitei a condição de intrusa. O tempo congelado petrificava-se em imagem intocada. Uma foto na parede. Nada mais. Como Itabira de Drummond.

O portão, fechei-o, à saída. Do casarão restam as saudades lá habitadas. A essência do tempo já não é a mesma. De geração em geração, os silêncios se metamorfosearam. A amiga insiste numa vida falseada em modelos inexistentes. É preciso entender que ali o tempo enterrou as circunstâncias. Agora, valem tão somente as lembranças armazenadas.

Chove. E chove a chuva das reminiscências. A terra molhada, fragrância arcaica, encarrega-se de avivar rememorações.

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