quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Saudade dos meus arredores

Fátima Quintas





Estou em plena Avenida Dezessete de Agosto, Casa Forte, a conviver com o turbilhão do trânsito. Automóveis buzinam, a irritação aumenta, a vagarosa marcha me leva a desenhar o bairro em seus detalhes. Rostos aflitos se angustiam com o aprisionamento do tráfego. Não há muito o quer fazer a não ser aguardar a vez. O semáforo impende a passagem, o cruzamento fecha as possibilidades, observa-se uma verdadeira confusão entre os carros que vão e voltam. Alheia à efervescência do entorno, espreito a parada de ônibus: uma mulher vigia o relógio com jeito agoniado, o homem maduro passa a mão pelos cabelos, o suor escorre-lhe pelo rosto, a estudante de bolsa às costas tenta flertar com o rapaz do outro lado, a mulher grávida alisa a barriga em afagos maternos, um senhor muda de óculos, guarda os escuros e troca-os pelos de grau. Naquele quadrante da calçada, há uma humanidade representativa do que somos. E não falta a criança que, cansada, pede braço. O ônibus retarda. Sob o calor infernal de um mês de março atípico, o mundo estanca. São 17 horas de uma quarta-feira de 2010.

O som das buzinas dói nos ouvidos. Nervos à flor da pele se encaminham para algum lugar; nada parece acalmar o burburinho do entardecer. Vejo o céu azul preparando-se para receber a noite, vejo a moça casadoira respirando fundo, vejo a imobilização da jovem diante do tenso cenário, vejo a aflição de fisionomias entregues à impaciência do que está por acontecer.

Fujo do frenesi: retrocedo alguns anos. Cheguei ao bairro de Casa Forte em 1992. Tudo era diferente! É bem verdade que já se passaram 18 anos e sequer dei conta disso. O tempo machadianamente vai enterrando os sonhos; não perceber o desmonte dos anos é uma forma de resistência. O que me impressiona, contudo, é a celeridade da mudança. Quantas vezes apregoei que Casa Forte representava um arrabalde calmo, bucólico, com cheiro de verde e de antigos romantismos! Talvez fosse assim mesmo. Atravessava-se de ponta a ponta a Av. Dezessete de Agosto com tranquilidade, sem açodamentos, um perambular à sombra de árvores frondosas, de casarões adormecidos, de quintais sonolentos, de cachorros latindo... Em criança, ir a Casa Forte era presente dos dias de sábado, quando o pai se dispunha a levar os filhos, no seu “deslumbrante” carro Ford verde, a diversões mais distantes, quase uma pequena viagem. E com direito a fantasmas — Ah! as casas mal-assombradas! Eu tinha medo, escondia-me, cabeça baixa, não ousava encarar os duendes de frente. Os vidros do carro se mantinham fechados para evitar que as bruxas desfilassem livremente. Apipucos? Apipucos era um delicioso interior com sopros de mata cerrada e bichos selvagens. Então vinha o caminho da Vivenda de Santo Antônio, residência de Gilberto Freyre; e o sossego dos Maristas, lá ao alto, albergando o mistério da reclusão, o ar puro, clima ameno, paz interior... Para completar, a ladeira em curva, a garantir surpresas inesperadas. Que lhaneza de passeio!

Não vou lamentar o desorganizado desenvolvimento urbano. Não vou lamentar a morte da Casa de Saúde São José. Não vou lamentar os intermináveis engarrafamentos na hora de pique ou a qualquer hora. Não vou lamentar os espigões que surgem em áreas embrulhadas pelo antigo. Não vou lamentar a descaracterização de um bairro que merece todo um respeito arquitetônico. De que adiantaria o meu histriônico espanto? Seria apenas um grito a mais no deserto inaudível.

Restam ainda cantinhos parcialmente preservados no meio a tanto rebuliço: o Poço da Panela cravado em solo atávico; parte da Praça de Casa Forte retém suspiros de outras épocas — a imponência da Matriz, a simetria do Colégio da Sagrada Família, o corredor de poucas casas conjugadas, a começar com o cartório da esquina. Lampejos angelicais sobrevivem à volúpia do desenfreado urbanismo.

Volto à realidade. Por um instante esqueço que estou na Av. Dezessete de Agosto em pleno alvoroço de rostos anônimos e apreensivos. O trânsito não avança. Continuo vendo e sentindo o desespero da cidade grande. Ainda bem que cultivo devaneios. Então, sobrevivo.

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