sexta-feira, 3 de março de 2017

ÁLBUM DE FAMÍLIA

                                               

          
Os retratos me tocam.Chego a ter uma certa devoção pelos álbuns de família. Vejo-os não somente com os olhos, mas com todos os sentidos. As mãos apalpam rostos que não conheci; o olfato aspira a perfumes antigos que me inebriam; ouço vozes calorosas de tios, tias, avôs, avós, bisavós, bisavôs, parentes distantes com histórias belíssimas a contar. Fortuna de lembranças;relicário sagrado;tesouro de mim mesma.
            Pensar que os álbuns de família estavam sempre expostos à mesa da sala de estar nos tempos patriarcais e semipatriarcais! Todos a eles se achegavam, sortilégio que não faltava em nenhuma casa-grande. De pronto, os entes queridos ganhavam o timbre da eternidade. Assim, passei a conhecer muito alémdaquilo que pude assistir.  
            Se um dia o rosto existiu, por que não amá-lo através do esboço retratado? Sou uma privilegiada. Cruzo caminhos que conduzem aimaginação para outras vivências. E mais ainda: as histórias que irrompem dos retratos são histórias verdadeiras, retiradas de documentos fidedignos, garimpadas em velhos papéis, cheios de bolor, porém, capazes de oferecer detalhes mais cativantes que qualquer enredo ficcional. O que é a vida senão uma tentativa de copiar desejos espalhados em lugares anônimos, enigmáticos, ainda que tão próximos? Qualquer narrativa se constrói à guisa da soma de tempos que sequer consigo abstrair num conjunto fechado. Convivo com o que foi, nem por isso me sinto mais vulnerável pelo calendário extinto. O passado é mais consistente do que a efemeridade do instante. Existiu efetivamente e me permite debulhá-lo à minha maneira. Os contornos mudam nas reviviscências. A depender do meu estado de espírito, lanço a isca em alto mar ou retraio o anzol com medo da tempestade. Não preciso de grandes tormentas. As ondas mais altas são suficientes, em alguns momentos, para me assustarem, fazendo-me recuar na roda dos desafios.  
            Passo as páginas, uma a uma, do álbum sempre amado. O retrato me comunica planos evocativos: penteados, roupas, adornos,chapéus elegantes; portes aristocráticos, vestidos colados, sobrancelhas grossas, mais adiante adelgaçadas; blusas com babados, mangas compridas, decotes ousados em traje de gala; veludos, organzas, saías plissadas, algumas godês, outras levemente ajustadas, a alongar o corpo; paletós bem cortados, bengalas, bigodes, barbas zeladas com esmero, pince-nez; crianças, homens, mulheres...
            A textura em preto e branco explode. A imagem é bem mais forte que o simples papel. E há o implícito revelando-se devagar: toco na pele, na carne, na alma da gente que fala, que afaga, que repreende, que acarinha, que repassa liturgiasjá enevoadas.  Nada falta neste banquete nostálgico. Ele é tão meu que confesso a vontade incontrolável de preservá-lo, de retê-lo egoisticamente.Trago o pudor de quem sabe avaliar o inventário da vida. Eis-me diante do espetáculo dos que me aplaudiram em mera transcendência geracional. Os rostos me sacolejam. Os minutos exalam sentimentos de perda. Mas, o que seria de mim sem essa felicidade que tanto vivi? A saudade de hoje só tem razão de ser pela felicidade de ontem. Aliás, só conheço uma ou outra porque deixei de tê-las algum dia. A plenitude da presença impõe emoções irreversíveis, lá adiante, quando o vazio se instala.
            O tempo repousa plácido nas minhas mãos. Deixo-me observar pelos olhos dos que me veem. Os risos e as lágrimas apegam-se à memória como se a exposição de faces saltasse das páginas que já não são páginas, mas pedaços de mim. Não sei onde começa o presente e nem onde termina o passado. Ainda bem que tenho a vivaz consciência do ser, eu, todos os tempos em um mesmo tempo.
            O álbum de família permanece aberto. Minhas mãos tremem. Vejo e vivo sentimentos que são heranças imemoriais de uma história que, seguramente, é a minha própria história.


Fátima Quintas é membro da Academia Pernambucana de Letras. E-mail: fquintas84@terra.com.br 

2 comentários:

  1. Leio suas crônicas no JC toda quarta, mas agora com acesso ao blog, vou vê todos os dias suas maravilhosas ideias transcendentes.

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  2. Querida Fátima, que bom poder ler suas crônicas aqui no blog. Lendo "Álbum de Família", para mim, foi um passeio nas imagens que tenho aqui em casa, das muitas fotografias antigas que cuidadosamente guardo e tento preservar. Preservar e também investigar o passado, as histórias das pessoas, tentando entender um pouco como foi a vida dos meus antepassados e dos seus amigos e conhecidos. Um beijo com carinho, Eleonora Saldanha-Marston 13/Março/2017

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