sábado, 27 de maio de 2017

Zonza-zonza


O mundo gira ao meu redor. Estou zonza. Não sou, entretanto, o epicentro de um mandala em cuja construção sequer colaborei –  esse rabisco geográfico que se chama espaço elaboraram-no por mim. Vejo o que é concreto, mas enxergo com mais profundidade o abstrato, o invisível, as entrelinhas. A obviedade me fatiga, não me seduzem as conclusões aligeiradas, fruto de óbvias inferências. Os revestimentos artificiais não resistem à ação da menor ventania. Qualquer aragem supostamente rebelde poderá esgarçar o modelo da circunferência. Disseram-me, ainda pequenina, que o universo é redondo, daí o excesso de zonzeira que me acode. Ao lado dos códigos irrefutáveis, descubro o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: “As cousas não têm significação – têm existência./ As cousas são o único sentido oculto das cousas.”
Vale o que sinto, não o que apalpo. Capto o inexistente. Não estou presa ao círculo sensorial, nem comungo dos ensinamentos dogmáticos. Exaurem-me as ideias concebidas sob severas precisões. A minha humanidade rejeita qualquer verbo conjugado no imperativo. Esqueço os mandamentos que um dia me subjugaram ao receituário da perfeição, vou além, abandono as virtudes inodoras e incolores...  Quantas vezes andei sobre pedregulhos? Vivo o minuto, cada um, não traço planos para o instante que se segue; ele já passou,  nada fiz, deixei-o ao largo, um tanto à deriva — eu própria navego em um barco adernado. Voltarei à proa. Careço da imensidão dos horizontes, dos portos inatingíveis, de tudo que me leve ao desatino do sonho. Busco a volatilidade da criação e as miragens arquetípicas...  “Meus sonhos têm asas/ e saem do mar”.
Tenho lápis e papel. Faltam-me, contudo, palavras. Tento juntá-las, mas os sons não se harmonizam, há sílabas a mais e imaginação a menos. Não me conformo com essa infertilidade, necessito expandir os limites do mundo ou reinventá-los à luz da libertação. Serei capaz de ultrapassar as fronteiras que me embargaram, ou a minha infante aventura é de tamanho diminuto?  A folha de papel, antes tão larga e desértica, nela não fui capaz de escrevinhar o nome desejo. E, em meio a eufemismos, escapo valentemente do parágrafo por concluir. Se neguei-me o direito da espontaneidade, pelos menos assumo a consciência da incompletude. 
Fátima Quintas é da Academia Pernambucana de Letras. Email: fquintas84@terra.com.br

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