terça-feira, 12 de outubro de 2010

A DIFÍCIL ARTE DE ESCREVER

Fátima Quintas


Tenho medo da página em branco. Assustam-me as folhas desérticas à espera de palavras ainda não concebidas. O receio aumenta quando a consciência do dizer se instala, censura que limita a criatividade ou que faz latejar em veias pulsantes as ambiguidades de cada um. Escrever é um gesto de ousadia, revela um certo desatino, uma quase loucura. Afinal, que dirá o leitor diante de palavras com aparente nexo ou propositadamente desarticuladas? Faulkner (1897-1962) não se preocupava com regras de pontuação, menos ainda com explicitações temporais. O tempo era o presente que se metamorfoseava ao seu bel prazer. Joyce (1882-1941) explorava a musicalidade em uma escritura de altos e baixos, trechos autônomos e distantes de previsíveis linearidades. Machado de Assis (1839-1908) se enredava numa fina ironia; crítico acirrado, perscrutava os variados matizes de uma sociedade convencional. Guimarães Rosa (1908-1967) adotava um léxico próprio, com termos atávicos, criados por ele ou garimpados em pesquisa profunda, tais, que ensejou dicionários em torno da sua obra, notadamente “Grande Sertão: veredas”. Clarice Lispector (1920-1977) alertava: “Mas já que se há de escrever, que ao menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. E Manuel Bandeira (1886-1968) decretou: “Estou farto do lirismo comedido/do lirismo bem comportado/ abaixo os puristas/ Quero antes o lirismo dos loucos/O lirismo dos bêbados/O lirismo difícil e pungente dos bêbados”.

Cada escritor busca sua libertação, assumindo o compromisso apenas de alongar-se em retratos simbólicos. Escrever é preciso. Quão complexo, todavia, ser original! E tudo parece acabar em repetições, em idéias que outros já dominaram, na arte quase impossível de inventar. A narrativa exige pessoalidade e um grande manancial de antevisões. Por isso, o escrever mexe com a alma, exaurindo-a até o limite do suportável. Só aí a palavra ganha a verdadeira transignificação. Lembro de Adélia Prado, quando comunica sua inquietação ao olhar para uma pedra e vê-la uma pedra — então, afirma não se encontrar na hora de escrever. É exatamente a subjetivação do olhar que estimula a inspiração. Uma pedra pode ser uma pedra, mas pode não ser. Melhor concebê-la uma metapedra e dela extrair o que a fantasia será capaz de inferir.

Um texto habilmente elaborado sugere, jamais impõe conclusões. Cabe à imaginação de quem lê a construção e a desconstrução do lido. Isto me recorda a acurada escuta das novelas de rádio na fase de criança, lá pelos idos de 1955. A sonoplastia levava a mundos surrealistas. As emoções se desdobravam além do plausível; tudo se desenrolava em contextos ocultos, nunca visualizados, mas infinitamente imagináveis. A literatura se aproxima desse cenário, o seu domínio é o do implícito: deve conter a sonoplastia do não visto. É exatamente o jogo de palavras numa afinada partitura que possibilita os devaneios da significação, devaneios particularizados em cada autor e em cada leitor. Uns veem de uma forma; outros, de outra — a narrativa, portanto, se multiplica em captações individuais, metaforicamente abstraídas.

Se a sonoplastia transmite sons tonitruantes ou melodiosos, a cenografia das palavras ondula entre o que deve ser dito e o que há de se omitir. A luta do escritor consiste na escolha. Quantas vezes levamos dias e dias para encontrar — muitas vezes sem sucesso — a forma adequada à frase inacabada! O escritor torturado nunca se satisfaz, um permanente angustiado, a perseguir o arremate que nunca chega. Ainda bem. A linguagem não se conclui, escapa de soluções simplistas, perdura ao longo do tempo numa caminhada eterna e eternizante. O pensamento, se possui estilo e beleza, não tem época. “Os Diálogos” de Platão são belos e consagrados na sua leveza artística. Nada os maculou nem os maculará, pois o presente, seja ele qual for, consolida-os como expressão estética.

Escrever reclama sofrimento, e muito. O prazer experimenta-se depois do texto estruturado. E, assim mesmo, ancorado em dúvidas, incertezas e inseguranças. Há uma aliança indissociável entre silêncios e frases em ruptura. Silêncios que selam mistérios e pausas da literatura. E qual a palavra do silêncio?

2 comentários:

  1. O silêncio te respode quando acordas todas as manhãs, ou quando pela noite entras em outras dimensões.no teu proprio pensamentos está todas as respostas.

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  2. Olá Fátima, boa noite meu anjo.
    Me encantei sobre o que você escreveu sobre A DIFÍCIL ARTE DE ESCREVER.
    Sou cantora e compositora, e às vezes quando estou compondo, entro num mundo somente meu, pois são nesses momentos que afloram todas as minhas emoções, alegres ou tristes.
    Me sinto inquieta e decepcionada quando não encontro as palavras certas para expressar tudo aquilo que trago dentro de mim.
    Então dou um tempo, pois sei que quando eu menos esperar, tudo fluirá ao meu gosto.
    Grande abraço minha querida.
    Fique na paz;

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