sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Mulheres à janela

Fátima Quintas




Na viagem que empreendo à Zona da Mata maravilho-me com uma pequena rua, repleta de moradas simples, lugarejo ausente, um cartão postal, a esculpir rostos à janela, atentos, quase paralisados; perfis que poderiam ser esculturas de pedra. Olhares cândidos vigiam a vida, ternos, vagos, lúdicos, a perscrutar a realidade sem fúteis inquietações. Ar lânguido, passivo, pacífico. Aprecio cuidadosamente a paisagem: casas conjugadas, pintadas de cores verdes, azuis, beges, enfileiram-se em harmonia, mulheres vestidas com roupas de chita, cabelos compridos e presos, faces amenas, comissuras delineadas. São 2 horas da tarde; a vila se encanta com os pequenos derredores. Ando a pé, cautelosamente, a ver um quadro que me sugere irreal. Mulheres silenciosas, um tanto apáticas, mas de aparência feliz. De bem com o tempo. Sem aflições exteriores. Resignadas e pacientes diante do mundo miúdo, seu, seu.

Não são adolescentes as mulheres que passam à minha vista. Rostos assemelhados, a estética rural me convida a percebê-las de modo diferente. O relógio anuncia as horas, elas pouco se incomodam; ali se detêm a mirar o destino de uma rua, tão igual às outras, porém, com a chancela da familiaridade. Essa é a rua em que moram, em que choram as dores diuturnas, em que se alegram com maridos e filhos... Sozinhas, agora, miram.

Hora de lazer. Almoço servido, pratos lavados, crianças a brincar na praça da esquina. Tarefas cumpridas. A janela transcende a labuta do lar. E ali relaxam o corpo e não pensam em nada, somente no vazio da rua, momento de descanso, uma pausa na existência. Deixo-me envolver pela trégua dos minutos, já não estou em mim, sou penas uma entre os rostos estatuários. Mas há um hiato intransponível entre o que sinto e o que elas sentem. Por mais que tente me livrar das minhas memórias, os acordes acabam ressoando nos ouvidos. Mesmo assim, sabe-me bem ouvir o silêncio das mulheres à janela.

Então ouço e vejo. Vejo lábios balbuciando repetidas preces; vejo risos de prazer disfarçados em discretos rictus; vejo peles ressequidas pela aragem do mormaço, próprio do início da tarde; vejo a paz estampada nos rostos, rostos humildes, anônimos. E ouço o quanto o silêncio me diz da história de cada uma. Maridos labutando na lavoura, filhos na escola, os pequerruchos a correrem em lugares seguros; mulheres de trinta a quarenta anos, mãos envelhecidas pelo desgaste do trabalho diário, magras, manchadas, corpos pouco tratados. Não se entreolham, o retrato é de frente, e o mundo se perde no pequeno quadrilátero vivente: Maria, Quitéria, Amara, Rosália...

Alguém me revela o nome? Não. O silêncio representa o único interlocutor. Mulheres impávidas, braços repousados nos alisares; resta-me a expressão de rostos calados, afirmativos, a refletir o cansaço dos dias. Eu me ponho à espreita, tão inativa quanto elas; elas, mulheres desconhecidas, que sabem usar o que a janela simboliza, janelas que vão além, além, além de cada uma. Para além da hora presente. Adiante, sem limites. Ao horizonte perdido. Assumo uma inércia que se quer imóvel. E são duas horas da tarde. Cedo demais para vaticinar caminhos.

Nenhum carro, nenhum transeunte, ninguém. Engano-me: avisto um homem sentado na beira da calçada. Calçada alta, estreita, com pequenas escadas para acessá-la. De três a quatro degraus. Coisa pouca. E a janela aberta, os dois postigos, cada mulher só.

Deambulo de um lado para o outro; pessoa alguma se interessa pela estranha visita. Que importa àquelas mulheres a minha presença? Nada indago. Contentam-me as imagens plácidas, indiferentes às circunstâncias, as delas e as minhas. A hora pede apenas repouso. Entendo a mensagem e permaneço quieta. Muitas janelas. Conto: doze.

Passa das três horas quando abandono o lugarejo de um município que não identifico. Os rostos sem nome impregnam-se ao meu, ainda que nenhuma palavra tenha sido dita. Para quê?

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