sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O mundo de meu avô

Fátima Quintas




Precisei ir ao bairro da Ilha do Leite. Não me apetece sair das minhas cercanias. Mas heroicamente fui. Tomei o carro, saindo de Casa Forte, e levei uma hora para chegar ao destino. Até aí tudo aparentemente dentro do suportável em dias atuais. Suportável? O retorno deu-se às 17 horas. O mesmo percurso contabilizou 2h30. Engarrafamento descomunal: carros a buzinar, marcha lenta, irritação coletiva. O Recife transformava-se num mar de gente. Uma população transbordante, uma multidão anônima que falava, gesticulava, perdida, perdida, a denunciar sentimentos de orfandade. Triste do país que não possui seus heróis. Não havia o que fazer, tampouco a quem recorrer. Ônibus, automóveis e motos atravancados, à espera de algum messias libertador. As esperanças se ofuscavam no patente desespero. De olhos abertos, bem abertos, tive medo do quadro asfixiante. O engarrafamento se estendia por quilômetros; e não se sabia a razão do porquê. Então, pensei em meu avô paterno, Gabriel Soares Quintas. Na sua velhice, encontrava-o placidamente deitado na rede, a jogar palavras cruzadas. Nada de longas caminhadas nem de alvoroços descabidos. Morreu aos 88 anos, de choque anafilático. Saudável, memória intacta, apetecia-lhe narrar as histórias do seu tempo de magistrado, quando percorria cidades do interior de Pernambuco. Referia-se a Gravatá com profundo afeto; assim, amei antecipadamente a cidade das Serras. Meu avô distinguia-se pela originalidade. Figura marcante e solitária. Surdo, acostumara-se tanto ao silêncio, que rejeitava todos os aparelhos que o ajudassem a ouvir. Apegava-se às suas circunstâncias, idealizando um Nirvana pessoal. Dizia com frequência: “Como será o mundo daqui a 50 anos? A neta o conhecerá; eu não. Ainda bem! Tenho pena das gerações futuras”.

Meu avô mostrava-se pessimista diante do advir. Na minha entusiasmada juventude as palavras fluíam sem ecos expressivos. Naquela tarde, entretanto, as lúcidas observações ganhavam o contorno de um vaticínio que já não me pegava de surpresa. Estaria o mundo em plena decadência? O fato é que reproduzo a mesma indagação: “Como será o mundo daqui a 50 anos?” Se os ruídos, a pressa, a vulgaridade, a ausência de valores, a corrupção, a falta de ética, o urbanismo sem planejamento, o desrespeito cívico e tantos outros males corriqueiros me assaltam, de forma devastadora, como tecer profecias que se alongam para além de meio século? Júlio Verne antecipou fenômenos, George Orwell também o fez no livro “1984” — escrito em 1948 —, a ficção científica — “Blade Runner”, de Ridley Scott, “Inteligência Artificial”, de Spielberg, “Sunshine, o alerta solar”, de Danny Boyle — igualmente busca prognósticos visionários. Quem sou eu, todavia, para maquinar previsões?

A humanidade deseja vencer o ritmo da natureza. Não só: os limites do corpo e da mente. Obstáculos intransponíveis inexistem. O importante é desafiar, desafiar, desafiar... Até?! Às vezes me pergunto se o meu nível de tolerância despencou ou se o mundo de hoje corresponde ao que o avô preconizava. Ele, o sábio avô, não curtia a rua, saía pouco, gostava de casa, aconchegava-se no quarto, lendo, fumando, pensando... fazendo palavras cruzadas. A tranquilidade reinava, os vizinhos se conheciam, ajudavam-se mutuamente, havia um mínimo de solidariedade, as pessoas entregavam-se à conversa fiada, o padeiro chegava à hora certa, o leiteiro, ao longe, anunciava a garrafa de vidro grosso, o rapaz do pirulito empunhava, feliz, a tábua de madeira, cheia de pequenos orifícios para acomodar os nacos de mel queimado. E o cavaquinho? A batida sonora no triângulo de metal incitava as glândulas salivares e raro o dia que não se saboreava a fina massa de trigo estalando. A casa de meu avô, à Manuel Bandeira, simboliza o oásis do passado. Recordo-a como um oráculo de ternuras.

E a fila não andava; de nada valiam os impropérios. Ouvia-os ao modo de uma despistada artilharia. Já era noite e ainda me encontrava na Avenida Agamenon Magalhães. Somos todos reféns de um mundo ousado e sem controle. Astucioso, irreverente, a provocar múltiplas desarmonias. Na selva de pedra, o caos se instala à vontade, sem pedir licença, consequência de uma modernidade em declínio.

Para suportar a desolação das horas perdidas resolvi abstrair o contexto e mergulhar na serenidade da casa de meu avô.

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