quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Tudo está à venda

Fátima Quintas






Em uma de suas últimas entrevistas, em novembro de 2008, Lévi-Strauss (antropólogo belga, falecido em novembro de 2009, aos 101 anos) afirmou não pertencer mais à humanidade numerosa dos nossos dias. O teor das suas palavras traduz uma lucidez extraordinária, o que me leva a refletir sobre o excesso populacional de um mundo em crise, acometido de profunda recessão moral. Falo isso porque no período de final de ano, percebo-me solta diante de uma multidão que caminha não sei bem para onde. Rostos fervilham nas lojas, nos shoppings, nos passeios, nos restaurantes... em todos os lugares públicos. E rostos apressados, ruborizados pelo vaivém, angustiados em vencer os obstáculos, maratonistas na corrida ao pódio.

O trânsito enlouquece, carros buzinam, motoristas se irritam, há um nervosismo geral que me convida a não sair de casa e a enredar-me no quarto de estudo — isolamento opcional. Gosto de gente. Mas de gente que me afague, que me toque com ternura, que agregue sentimentos comuns. Não gosto de multidões anônimas. Amedrontam-me as massas compactas, as mãos burilando regalos e mais regalos, as faces ansiosas na premência de adquirir bens materiais, sacolas cheias de “sonhos” adquiridos em lojas de vitrines sedutoras ou mesmo em lojas comuns. Os sonhos comprados são baratos demais para satisfazer a humanidade. Seja qual for o preço, tornam-se viáveis bagatelas.

Os valores mudaram, meu caro Machado de Assis, os Natais não mudaram. Os homens se metamorfosearam, alumbrados diante do que é venal, eufóricos em abarcar o mundo de qualquer forma. Sonho e felicidade se vulgarizaram, mercadoria de fácil acesso. Vale apenas negociar o preço do produto. A estrutura financeira oferece em módicas prestações mensais o tamanho do seu desejo. Tudo está à venda.

Pois é, tudo está à venda. Talvez este seja o lema maior do capitalismo selvagem. Em consequência, a mediocridade se instala, resultando numa derrocada que começa com a ausência do raciocínio crítico, com o desdém pela elite pensante e com a inversão grosseira dos modelos estéticos. O mundo banal é um mundo em que as emoções estão à venda; a ética está à venda; a integridade está à venda. Em qualquer esquina, sem grandes especulações. Do varejo ao atacado.

Onde fica a dignidade neste mar turbulento, pleno de ilusões e de falsas alegorias? Tenho medo da célere passagem das horas, da vulgaridade transformada numa terrível bola de neve que desce ladeira abaixo, indiferente aos que se recusam a engrossar suas fúteis e inexpressivas camadas.

O medo cresce. Reajo. Jamais capitulo. Necessito de forças para evitar ruínas interiores. Não quero o disfarce do superficial, assim como não quero admitir a idéia de que tudo está à venda. Não quero e nem posso enganar-me em nome da identidade primeira. Urge fortalecer a essência de mim mesma. Os homens esqueceram dos postulados morais num mundo cuja concentração populacional embaça as individualidades. Nesse jogo perverso, será que a disseminação do exótico-grotesco reverterá em fato corriqueiro? Hannah Arendt já alertava para o perigo da banalização do mal.

Não me perguntem por que resolvi falar nessas coisas num período repleto de aparentes cortesias. Tais questionamentos surgiram nos engarrafamentos dos finais de tarde na Avenida Rosa e Silva. E na Avenida Rui Barbosa. E na Dezessete de Agosto... Aqui ou alhures a humanidade sofre as mazelas da decadência. O pior é que o excesso populacional, anestesiado pela frívola rotina, não permite apreender os graves malefícios de uma sociedade em pleno colapso espiritual.

Um comentário:

  1. Professora,
    A sua crônica me fez (sempre me faz) sentir menos solitário. O frenesi irracional de fim de ano muito entristece-me, a ponto de adiar o que posso para janeiro.
    Sou duas vontades nas festas “natalinas” comerciais: a de estar “emariscado” na minha concha; e, a de desatinar pregando como um anti-conselheiro em pleno shopping:
    - calma minha gente, não é agora que o sertão vai virar mar!
    Mas, “a coletividade numerosa” é uma realidade, como disse o antropólogo, resta-me calar comendo a farofa de um bicho que nunca vi (acho-o quase mitológico) chamado chester, e sofrer ouvindo uma Simone onipresente/desencarnada ( fora de tom) em uma versão mal arranjada de uma música natalina americana.
    Bem-vinda de volta ao blog. Senti falta.
    Abraço,
    Joaquim

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