domingo, 17 de março de 2013

A Liturgia da Rosa

Fátima Quintas

 
Amarra o cabelo com displicência. As madeixas, meio soltas, meio presas, dão-lhe um ar de desprendimento, embora a obstinação de ir adiante nunca lhe arrefeça o destino, mesmo à sombra de falsas aparências. Ela, ruiva e sardenta, alta e magra, nariz arrebitado, sabe que o mundo não gira em torno de si. E, no entanto, os paradoxos de uma mulher, a perder a juventude e a acatar a madureza, consagra-lhe a virtude da sensatez. Olha ao redor, viu uma bela rosa vermelha germinando na jardineira da varanda. A maciez das pétalas, não se atreve a manusear; o mirar lhe parece suficiente, mirar apenas... e aproximar-se... e inalar o orvalho desprendido da cor de sangue, sangue. A curvatura da flor denuncia o tempo que perdura ela, viva, vívida, vivente; a corola dobrada se submete às horas e aos imprevistos futuros. Amanhã, talvez antes do alvorecer, em pleno desabrochar, já não se exiba em igual fulguração.

Quão delicadas as pétalas formadas à custa da transformação dos estames! O caule fino, com alguns espinhos, representa a pálida defesa de quem se oferece sem limites, inteira, a rosa. As folhas verdes, a resguardar a divindade, evocam uma espécie de anteparo para deixar que o carmim exploda no escarlate da sedução. Aveludada. Tecida à mão. Textura única — paroxismo do que é sagrado. O vento não ousa vergá-la, mas venta, e venta muito, o assobio se ouve como uma canção entoada em solfejos intermitentes. Gêmeos e irregulares. Na quietude da paisagem, os traços esboçam a feminilidade dos toques sensuais, vagarosos, lentos, sussurrantes... Entre sopros inaudíveis, há o eco de um dizer impossível. Existem palavras para aquele pouso de eternidade? Camila relaxa.

As madeixas, arregaçadas em desalinho, despencam sobre os ombros —pequenos feixes desfilam na fina pele de uma boca pronta para ser beijada. Os lábios molham-se mutuamente, enquanto o roçar dos cabelos instiga-lhe o anseio de possuir a rosa ou de ser ela própria uma rosa. Não se conforma em querer tanto a prenda que não lhe regala; ainda assim, o vermelho grita na sua carne fremente e pouco saciada. Ela, uma mulher, ruiva e descalça, dona de um corpo magro e de uma anatomia extenuada de sensibilidade. Inspira o olor da rosa e então faz-se rosa também, a criatura.

O que é ser rosa? Teria capacidade para tanto? Entreolham-se a rosa e Camila. Os lábios miúdos, ungidos pelo movimento do toque mútuo, cadência de leveza e de passividade; uma mulher indefinida na fronteira do sentir e do amar. Os lábios miúdos recolhem-se diante da negação de assumir-se em flor — não pode ser a rosa; faltam-lhe antecedentes. O excesso do olhar transforma a calidez do momento. Tem medo. Nem faz frio; tampouco calor. Uma rosa a debulhar-se; É isso. Isso.

Para quem? A mulher se afere menor e incapaz de receber o tamanho do cálice das rosas, frágil na timidez de explodir, de explodir imune às levianas exterioridades. O que abona o desenho de uma superfície intangível corresponde exatamente à exuberância do etéreo. Camila encharca-se de arrepios de êxtase — jamais quis conferir a data de nascimento, de modo a evitar a subtração do tempo, irreversível. A vida se eterniza a cada fôlego. Só. O instante da rosa evade-se por entre um perscrutar repleto de insinuações.

A beleza se exaure quando os ponteiros do relógio se encontram? Ou o tempo se congela no estatismo das hastes em contato físico? Entre a beleza e a efemeridade, por acaso não circulam inexplicáveis pactos de amor? A rosa veio ao mundo no seu lento nascer, longe de traumas ou inúteis arrebatamentos. Nem o vento que compunge o corpo da mulher, a escorregar o tecido fino do vestido sobre a pele indócil, a percorrer os seios como um desleal intruso, nem o vento se arrisca a afastar as suas pétalas. A mulher entende a vulnerabilidade de estar à frente do mundo: e em posição de artilharia. Fecha os olhos para abri-los depois com mais vigor, necessita preparar a solenidade da rosa, o ver, o enxergar, o mirar... as pálpebras se mexem acompanhando a medida da captura sensorial.

Eu quero ver... eu quero ver... Camila murmura entre os lábios sem pintura. Ela se argui do direito de sibilar a renúncia de apalpar a rosa. Tocar o que se ama pode vir a ser uma maneira de macular o “perfeito”. A rosa sozinha se basta, lânguida, morosa, independente. Basta-se tanto que durante o espaço de uma manhã, à Malherbe, suas pétalas se encolhem, o talo tomba, a semente se transfigura em pó.

Ela, a mulher, continua na varanda, ruiva, cabelos ao vento, lábios umedecidos, pés descalços, à espera de um outro renascimento... Ignora o sentido do instante que se inicia.

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