sábado, 2 de março de 2013

Os Amantes


Fátima Quintas


Ela, no quarto, dorme. Ele, de pé, olha-a. Dois corpos separados pelo elo do amor. As pernas torneadas, o corpo relaxado, a pele aveludada dão a sensação de uma estátua esculpida por mãos de artista. O belo ali está: os seios rígidos, a cintura em curva, o colo largo, a exibir um fino e precioso trancelim de ouro; as mãos com dedos longilíneos, unhas em esmalte incolor, e o cheiro calmante de lavanda inglesa, exalando fragrâncias seráficas. Ela, uma mulher, com requintes de ser mulher. Ele, um homem, abandonado no seu olhar intenso. Penetrante.

Não se mexe, os músculos estão retesos, a voz tenta balbuciar algumas palavras, mas não diz nada. Não é tempo de falar. Nem teria o que dizer, ali o silêncio prevalece em respeito ao muito que deveria pronunciar. Mira apenas. Percebe a beleza do corpo, do outro. Ela possui a tez alva, os cabelos de um cacheado largo, louros, sedosos. Os olhos grandes, azuis, com sobrancelhas grossas, bem delineadas. A boca, um pouco entreaberta, sensualmente entreaberta, permanece imóvel, a deixar correr um fio de respiração, o que a torna ainda mais provocante. A camisola bege, de uma transparência proposital, serve de moldura a um quadro com desvelos impressionistas. Tudo é real e, no entanto, há algo esfumaçado na figura da mulher.

O homem relaxa os músculos, as pernas se afastam da posição ereta, há um momento de lassidão. As costas dobram-se, ele consegue mexer-se, chega a curvar-se para tocá-la, recua, desiste do ato imprudente. E não se ouve o menor ruído no quarto mudo. A mesa de cabeceira ao seu lado, tão próxima e distante. Não se comove com o seu olhar, jacarandá maciço, herança da avó, dela, a mulher deitada na placidez do sono. Ele a quer. Sempre a quis, nunca declinou desse desejo tão fiel à sua massa corpórea. O peito arfando uma vontade incontrolável. À medida do impossível traça o contorno da imobilidade.

Sobre a mesa de cabeceira, um livro marcado, nem chegara ao meio da leitura, páginas e páginas por ler, o livro repousa tranquilo à espera de quem o toque. Não lê o título o homem em pé. Prefere adivinhar o gosto da mulher, a mulher que ele ama, deitada, em paz. A dormir. A respiração comedida. Expirando, inspirando, um vaivém que o perturba na sua intensa regularidade. Freia o próprio corpo, alto, magro, esguio. Um atleta na sua nudez de Apolo. Ou de Adônis. Os cabelos pretos recebem as mãos do homem em um gesto de afago ou de impaciência. Penteia-os para trás, evitando que a mecha cubra-lhe a testa ou o olho esquerdo. É tempo de mirar e nada desvirtuará o propósito.

A mulher dorme. E pouco sabe da consciência do sono. Ela se entrega à letargia de um possível cansaço. Um pingo de suor escorre-lhe do pescoço, desce lentamente até atingir o ventre ofegante. E quase em evaporação, o pingo se acomoda na pequena reentrância da cintura. Exibe-se involuntariamente a mulher que o homem vê.  Não há resistência no corpo exposto, um corpo que há pouco foi tocado, amado, extenuado.

Dois corpos. Os amantes.

Ela, a mulher, dorme. Ele, o homem, olha-a.

Nenhum comentário:

Postar um comentário