sábado, 9 de março de 2013

O não-lugar de Mariana

Fátima Quintas




Sobre a mesa oval da sala de jantar, o jarro de louça repousa. Flores novas, retiradas do próprio canteiro da casa, lindas, exuberantes. Mariana se orgulha dos cuidados que ela, uma mulher simples, devotada aos filhos e à lide doméstica, tributa às rosas do jardim, um pequeno retângulo de terra que se localiza na frente do terraço da morada. Aquele canto é seu, seu. Nunca ouvira elogios de parentes, tampouco dos filhos ou do marido, suas sementes despontam alheias à dinâmica de um lar repleto de afazeres e individualismos. Quem percebe a mulher de dentro da casa? 

Desde que as refeições sejam servidas à hora certa; desde que o café se mantenha no ponto, forte, amargo; desde que a roupa lavada e engomada se renove no guarda-roupa; desde que a cerveja se conserve bem gelada; desde que a cozinha se apresente limpa, asseada; desde que o almoço exiba pratos bem arrumados, desde que... tudo corre bem naquela família de cinco pessoas: marido, mulher, três filhos. E nada há a comentar. 

O dia atarefado, Mariana não se preza, de si pouco se afaga. Acorda ao som do despertador, côa o café, ferve o leite, prepara os sanduíches, frita o queijo de coalho... Despeja a louça na pia e ruma à feira na ânsia de encontrar carne fresca, frutas maduras, temperos preparados artesanalmente, hortaliças verdes e respingadas pelo orvalho da madrugada. Corpo frágil, o de Mariana, afeito a delicadezas; a energia de que dispõe não lhe é suficiente para a jornada em sequência. Não reclama; sequer ousa queixar-se.  E o peixe? Ah, que trabalheira! Quando o vendedor falha — o velho Seu Ernesto, com jeito sisudo, sério —, opta por outras alternativas que nem a todos agradam. Erra sempre, ainda que não poupe diligências de modo a evitar avulsas reclamações. A redobrada disciplina impõe-lhe uma tirânica atenção. Ela, tão diminuta, tímida, invisível; escondida em si, qual o sótão, o olvidado sótão, onde se abarrota a tralha do desnecessário. 

E os dias se processam iguais, iguais, iguais... Nada muda no corredor meditativo, os passos se alongam ou diminuem, os retratos na parede a olham e falam-lhe, e a ela cobram a dignidade dos antigos. Ao clamor de tantas vigilâncias, não tem o direito de decepcionar os ancestrais, mulheres dedicadas aos seus maridos, entregues à concha do lar, somente visíveis nos retratos da parede, então expressões tristes, mas gratificadas pelo dever cumprido. Belos rostos, perfis apolíneos, cabelos penteados em impecáveis coques... E o camafeu de pedra ônix, a emoldurar colos pouco desnudos!.. Entre um olhar e outro, os sentimentos se agudizam à sombra da lembrança de um passado próximo e virtuoso.

O peso sobre os ombros não a poupa de um destino pré-traçado. Mariana se esgueira por sobre uma herança que lhe exige o máximo de submissão. E ela? Quem é ela, senão uma mulher que se sente em vida apenas quando amanha a terra dos canteiros de rosa? À tarde, na hora perigosa do silêncio, ao vazio de uma casa sem som, dedica-se ao cultivo das raízes em crescimento, embriões viventes. Ali se confessa; ali conscientiza-se da sua nadificação; ali despoja-se dos pudores reprimidos. Ali toca no eu fugitivo, temeroso, em permanente trânsito. Mariana, um nome tão soado nos desvãos da casa — onde está a gravata, Mariana? Por que a toalha de banho ainda se encontra molhada, Mariana? A comida, hoje, levou sal a mais, Mariana —, tão soado, tão soado, e tão pouco desejado. 

A cozinha, a expor a assepsia da cerâmica vitrificada, a roupa passada a ferro, as camas cobertas com colchas de gorgorão selam a paz da solidão oca... Ao lado do fazer exaustivo, a folhagem cresce, as pétalas desabrocham, a fecundidade da rosa reproduz sentimentos em troca. A mulher se presenteia inteira, em completude, ao instante da rosa. E por esse instante, um tempo miúdo, soma de minutos fugazes, por esse instante, sempre por esse instante, aguarda a tarde que lhe traz a dádiva de ser, de ser-sendo. Mariana, em pleno colóquio de amor. Sem exasperações, na dolência de talos que se quebram ou se curvam ao embalo da efêmera existência. 

Um mínimo de tempo lhe rende o espaço da eternidade. E a eternidade se reduz a rosas vermelhas, Mariana não duvida dessa graça, do sentir que se confunde com um querer abafado — ninguém conhece e nem pode conhecer o seu único esconderijo. A transcendência se faz ao sabor da tarde, quando todos se afastam do lugar da casa, o lugar que é o dela, embora nunca a tenham enxergado no seu devido tamanho. O lugar se transfere de dentro para fora, para o não-lugar, pedaço de terra pouco habitado, a céu aberto, ignorado, superfície sem uso. 

O seu mundo resulta numa porta estreita. No entanto é lá que Mariana se assume mulher, premida pelos altos muros de um difuso existir. A tarde não se perpetua; despede-se na passagem da noite — a vigília recomeça. 

A outra mulher, que não é Mariana, entra em casa.        


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