Todos os dias, repriso
os mesmos rituais: alguns mecanicamente; outros com a consciência viva do que
estou fazendo. Acordo, descerro a cortina, vejo a natureza, enxergo os detalhes
do dia através das robustas árvores que desfilam à minha frente. A mangueira me
parece tão familiar que converso com ela como uma cúmplice que me acompanha ao
longo do dia. Não gosto de levantar-me bruscamente, preciso da sagrada
liturgia. Por temperamento, entrego-me ao cerne das coisas; não me apraz a
superficial externalidade. Existo devagar.
Ao
embalo de um despertar moroso, os momentos matutinos
acontecem, tendo o sol ou a chuva a comandar a atmosfera. O sol me agride com o
seu excesso de luz; o céu nublado me acolhe na semi penumbra do afago.
São nove horas: leio um
livro, assinalo frases, telefono para amigos, dirijo-me ao computador, penso no
que quero escrever, escrevo, não escrevo, sigo os momentos sequenciados com a
cautela dos que temem possíveis imprudências. A par disso, os ponteiros
continuam girando no avanço inexorável. De repente, o minuto passou, foi-se sem
a minha permissão. Afoita, eu. Desde quando controlo essa ciranda permanente?
Estou sempre a meio de alguma estrada porque as conclusões me incomodam, desejo
ir sem limites, há pensamentos que me seguem, o ponto e vírgula me agrada,
adiante, adiante, uma pausa apenas, por favor. Vigio o relógio. Ainda tenho
tempo para acrescentar mais uma frase no texto.
Meio-dia.
O que representa a metade do dia? Ah! se eu soubesse mensurar a cronologia
irreversível! Vou e volto no corredor, mas a mesa está posta para o almoço, é
hora da reunião em família. Gosto de ouvir os comentários em torno do banquete
faustoso. Risos, alegria, uma pitada irônica, ilações diversas...
A
tarde se aproxima numa prolongada louvação ao crepúsculo. Há um corre-corre que
a torna mais rápida e turbulenta. O mundo gira em velozes partituras, a
pós-modernidade acelera o ritmo, a difusão dos fenômenos se instala.O frenesi
distorce a dimensão reflexiva do mundo. O crepúsculo se inicia, o céu se faz em
sombras, já é noite.
Brusco,
num piscar de olhos, a natureza tropical dá lugar à presença da lua — são 18
horas. O compasso entre o dia e a noite parece regido por uma sinfonia bem
orquestrada ou talvez a noite brigue com o dia para logo assumir-se em
plenitude. E cedo chega. De inverno a verão; minutos a mais, minutos a menos.
Mas o dia é guloso nos seus fachos luminosos. Exibe-se tal qual espetáculo histriônico,
enquanto a noite se esconde por entre fantasmas apaziguadores.
Chego
em casa, olho a mangueira, recupero a quietude, janto frugalmente, recolho-me.
No claustro do meu gabinete, renovo a meditação da vida. Sento-me na poltrona
para inventariar o dia — hábito que nunca me largou. São 20 horas: recolho os
retalhos de mim em sossego. As máscaras impostas, a multiplicidades dos eus, as
várias cenas ficaram para trás. Fui tantas em um só dia que chego algumas vezes
a orgulhar-me do talento do meu personagem.
Meia-noite, o relógio a tiquetaquear —
respiro fundo e assalta-me o vazio da inutilidade de uma jornada sem nome. Então
lembro o poeta Daniel Lima e me refaço da passagem das horas: “Nada será jogado
no vazio./Nem mesmo o vazio da vida,/porque é vida./Nem mesmo o gesto
inútil,/pois—que é gesto,/Nem mesmo o que não chegou a realizar-se,/pois—que é
possível./Nem mesmo ainda o que jamais se realizará,/porque é promessa./E o
próprio impossível/é vontade absurda de existir./ E nisso existe.”
Olá, Fátima. Eu moro no mesmo prédio que você e recebi a notícia desse seu recanto pelo Facebook. É um prazer a forma simples, singela e poética com que constrói seus textos. Sua atenção aos pequenos detalhes do cotidiano que o tornam superiormente interessante. Bom, gostaria de repartir o meu blog com você, não sei bem por quê. Talvez seja ousadia da minha parte, talvez seja exibicionismo, talvez eu queira uma opinião de alguém bem mais versada na escrita e muito mais aculturada do que eu. Não sei. Sei que sigo esse impulso e deixo aqui o endereço para o bem ou para o mal: http://jornaldoprofeta.blogspot.com.br/
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