Mesmo na noite densa e escura, há
tochas que me iluminam: castiçais acesos. Olho-os. Velho hábito que me
acompanha desde a adolescência. As chamas me fascinam por incitar o bulício
interior de destroços já em ruínas. O fogo me convida a intensas mutações. Em
fervorosa doação, entrego-me ao calor excitante. Esqueço o tempo, o espaço, sou
apenas um pensamento vazio. Consigo elevar-me às dimensões etéreas do nada.
Então, alcanço o paroxismo da interioridade. E ao badalar da meia-noite, quando
todos dormem e o mundo parece estagnado na circunferência do sono, eu elaboro a
existência.
As velas choram. A sua essência repousa
entre a alegria e a tristeza, entre o sim e o não, entre o dia e a noite. O
fogo sugere êxtases gloriosos, as lágrimas decantam apelos soterrados. Ao longo do cilindro de cera, os pingos vão
se acumulando até formarem indecifráveis estalactites. Do pequeno choro às
cataratas do espírito, o ritual tem começo e fim, semelhanças e diferenças, compassos
e descompassos. Espio a vela, a vela me espia. A proximidade se faz tão amiúde que a vela fala
por mim. Uma interação silenciosa, firmada na simbiose da cumplicidade.
Sou adepta da cerimônia das velas. No
vácuo da noite, entre a vigília e o sono, acendo-as com a avidez de quem se
posta em uníssona oração. O pavio
virgem, as mãos em lenta gesticulação, o fósforo riscado estimulam-me diante da
cena. O ritual dos castiçais me convoca à consagração dos desejos. Por
enquanto, devoro apenas com ritmo paciente o choro das velas. Ao redor da
chama, uma aura indecifrada. Do vermelho matizado à própria fumaça que se
espraia sobre a retangular mesa de jacarandá, não se instalam hiatos entre o
calor da vela e o frio do choro. Não
estou a meio, estou no mimetismo dos heráldicos castiçais. Tenho receio de que
alguém me leia, afinal, o meu sussurro é recôndito, quero-o para dentro, bem
guardado nos solipsismos do coração.
As inquietações não cessam, mas a vela
se apaga ou queima até a derradeira possibilidade de exibir-se. Lentamente se
vai. Um adeus devagar, discreto, mudo, mas finito. Resta um belo quadro de lágrimas à sombra dos
estalactites em desenho abstrato, difuso, assimétrico. O escuro se agiganta. O
ritual termina. Serei eu a única a celebrar a cerimônia do fogo e da lágrima?
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