sábado, 27 de maio de 2017

Velas e Velas



                              Mesmo na noite densa e escura, há tochas que me iluminam: castiçais acesos. Olho-os. Velho hábito que me acompanha desde a adolescência. As chamas me fascinam por incitar o bulício interior de destroços já em ruínas. O fogo me convida a intensas mutações. Em fervorosa doação, entrego-me ao calor excitante. Esqueço o tempo, o espaço, sou apenas um pensamento vazio. Consigo elevar-me às dimensões etéreas do nada. Então, alcanço o paroxismo da interioridade. E ao badalar da meia-noite, quando todos dormem e o mundo parece estagnado na circunferência do sono, eu elaboro a existência.
                              As velas choram. A sua essência repousa entre a alegria e a tristeza, entre o sim e o não, entre o dia e a noite. O fogo sugere êxtases gloriosos, as lágrimas decantam apelos soterrados.  Ao longo do cilindro de cera, os pingos vão se acumulando até formarem indecifráveis estalactites. Do pequeno choro às cataratas do espírito, o ritual tem começo e fim, semelhanças e diferenças, compassos e descompassos. Espio a vela, a vela me espia.  A proximidade se faz tão amiúde que a vela fala por mim. Uma interação silenciosa, firmada na simbiose da cumplicidade.
                              Sou adepta da cerimônia das velas. No vácuo da noite, entre a vigília e o sono, acendo-as com a avidez de quem se posta em uníssona oração.  O pavio virgem, as mãos em lenta gesticulação, o fósforo riscado estimulam-me diante da cena. O ritual dos castiçais me convoca à consagração dos desejos. Por enquanto, devoro apenas com ritmo paciente o choro das velas. Ao redor da chama, uma aura indecifrada. Do vermelho matizado à própria fumaça que se espraia sobre a retangular mesa de jacarandá, não se instalam hiatos entre o calor da vela e o frio do choro.  Não estou a meio, estou no mimetismo dos heráldicos castiçais. Tenho receio de que alguém me leia, afinal, o meu sussurro é recôndito, quero-o para dentro, bem guardado nos solipsismos do coração.
                              As inquietações não cessam, mas a vela se apaga ou queima até a derradeira possibilidade de exibir-se. Lentamente se vai. Um adeus devagar, discreto, mudo, mas finito.  Resta um belo quadro de lágrimas à sombra dos estalactites em desenho abstrato, difuso, assimétrico. O escuro se agiganta. O ritual termina. Serei eu a única a celebrar a cerimônia do fogo e da lágrima?



                                                                                                      

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