terça-feira, 19 de outubro de 2010

Ah! As coisas miúdas...

Fátima Quintas


As viagens imaginárias me levam ao lugar que eu quero. Penso, sigo, levito sobre caminhos por mim aquarelados. Outro dia, uma amiga disse que o sonho dever ser grandioso, imenso, maior do que a nossa imaginação. Não consigo devanear para além do que imagino. O ponto limite é o voo da inventividade. Alcanço um limiar que se insere nos laços das circunstâncias, ainda que tudo esteja dentro de mim. Não fora. Acomodo os anseios nas gavetas perras e trancadas do inconsciente, quase sempre escondidas nos espaços abandonados, de modo a evitar contatos freqüentes. Às vezes, o pequeno se transforma numa amplitude sem tamanho. Gosto do simples e das coisas miúdas. Quando vejo uma rosa maravilho-me com suas pétalas aveludadas, vermelhas, cor de chá; pouco importa, o que vale é cada retalho que enxergo. Meus olhos veem o que pressinto. Assim não disponho de barreiras à minha frente.

E, no entanto, o tangível não representa a minha força interior. Toco no que sinto, o apenas palpável serve de linha de partida para as fantasias. Daí voar pelo mundo afora. Vou. Estou sempre indo como uma andorinha que procura a primavera, depois o verão, e retorna, a depender do ritmo das estações. Retenho nos olhos e na mente a capacidade de alumiar dias e noites. Por incrível que pareça, as noites clareiam os meus olhos, vejo melhor sob a penumbra, os castiçais acesos me bastam. A chama das velas oferece a luz de que necessito. Fachos histriônicos me encandeiam. As sombras permitem uma multiplicidade de visões, algumas indefinidas, outras definidas, todas permeadas por suaves intersecções. E entre imagens aladas transito no universo sensorial. Cabe-me velar pelos sentimentos, então, alimento a fonte dos desejos. E são tantos!

Vivo em alerta na tentativa de apreender o que há de menor no entorno. Amo os detalhes: mesa posta, talheres enfileirados, copos a cintilar, a pequena gota d’agua que desce no cristal transparente, quase minúscula; o seu movimento é mínimo, mas eu enxergo a lentidão de um pingo vazando pelo vidro exterior. Assisto à leveza do que parece invisível. Não ouso mexer em nada, vejo apenas. E vejo um copo sem cor, igual a todas as imagens límpidas, puras, claras.

Ao centro da mesa outros pingos repousam sobre as frutas que adornam a bandeja de prata. Exalam um intenso frescor. O círculo sem diâmetro mensurável fragmenta-se na superfície espessa da laranja, da goiaba, da maçã, da pêra... Ah!, como as coisas miúdas me agradam!...

Agigantam-me pela fragilidade. Nem conheço a minha altura quando percebo o pequeno. Assim, permito que a imaginação me torne fortaleza inabalável. Em átimos de segundo, o relógio gira e gira e gira... O tempo, esse desconhecido, vai se acumulando na sequência das frações mínimas. Se o tempo existe por sobre ínfimas camadas que não assimilo, o que dizer do meu pensar fluido, veloz, dinâmico e etéreo? Diáfano, sem medidas, porque apto a absorver tudo que me rodeia. Sobretudo os volteios diminutos.

A gota d’água continua migrando sem saber para onde. Quantas semelhanças se somam entre a gota d’água e eu? Não sei responder. As perguntas são sempre difíceis, reclamam prodigiosa intuição. E ao formulá-las, acabo me perdendo no que pretendia expressar. Mas a imaginação não rouba de ninguém o prazer de se fazer matéria concreta. Quantas vezes a criatividade se metamorfoseia no real! É uma questão apenas de exercício de abstração.

Das coisas miúdas extraio a substância da vida. Elas me conduzem ao sonho e a tudo que idealizo. Em algum momento assinalarei os pequenos nadas do cotidiano. Pegarei o lápis, o papel e começarei a definir pausadamente a relação, captando o que em volta de mim se delineia. Sem hierarquia. À vontade. Como se a duração do sonho começasse pela gota d’água ou por mim mesma, que sou tão pequena, equivalente às coisas miúdas que ninguém percebe; porém, dotada de uma enorme imaginação. O que mais posso almejar?

E penso e sonho e caminho e deslindo a gota d’água e não sei para onde vou, sequer sei o que sou.

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