sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Chile

Fátima Quintas




Dia 13 de outubro. O mundo hipnotiza-se diante de imagens aparentemente irreais. A emoção se instala em rostos anônimos. O mineiro Florêncio Ávalos, 31 anos, aponta dentro da cápsula Fênix. O primeiro sobrevivente da tragédia do deserto de Atacama irrompe de rosto sereno, sorriso nos lábios, a transmitir tranquilidade. Abraça prolongadamente o filho, Byron, de 7 anos, afaga a mulher num ímpeto de ternura, e cumprimenta, triunfante, o presidente chileno Sebastián Piñera. Está de volta. Nos olhos dos telespectadores, a lágrima incontrolável, o choro contido de dias acumulados. Cena inesquecível. Os outros serão içados lentamente, ao compasso de uma sequência estipulada com antecedência. Assim foi: Mario Sepúlveda, Juan Llanes, Carlos Mamani, Jimmy Sanchez...

Diante da televisão, assisto ao mais belo espetáculo exibido pela humanidade. Sem alardes, sem apelos histriônicos, sem alvoroços indevidos, a cápsula desce e sobe em um ritmo quase simétrico. Meus olhos pouco piscam, o momento é de arregalá-los, abri-los com a mesma intensidade do feito histórico. A ciência a serviço do homem, religiosamente prudente na sua missão redentora. Nessas 24 horas, um pouco menos, os sentimentos mais nobres da humanidade emergiram, ao som dos sinos das igrejas chilenas que repicavam freneticamente. Homens sobreviventes recuperavam o sentido da vida, resultado de uma equação milimetricamente traçada entre o irretocável controle psicológico, a férrea disciplina e a harmonia da coesão. O Chile demonstrava a sua humildade cívica e com ela abalava os corações latejantes.

Por último, cabeça erguida e missão cumprida, Luis Urzúa Iribarren, chefe do turno e líder dos mineiros, ressurge das cinzas, às 21h55 do dia 14 de outubro, tal qual a ave Fênix. A simbologia do nome, Fênix, retirado da mitologia do antigo Egito, acompanha o ato solene, paramentando-o de uma aura de sacralidade. Algo mágico, inexplicável, paira no ar. O deserto de Atacama não é mais o deserto de Atacama, mas o templo da solidariedade humana. Clímax, apoteose, vitória. Ícone de resistência de 33 homens que viveram 69 dias a 700 metros de profundidade, solapados na Mina San José, em condições absolutamente adversas à vida humana: umidade excessiva, temperatura alta, ausência de mínimas estruturas. E, no entanto, a luta pela sobrevivência, a esperança, a força dos espíritos superiores, sob o comando de um líder vigoroso, criaram uma ambiência capaz de fortalecer a vontade de prosseguir a caminhada. Uma tragédia, vencida pelo amor de mãos que se uniram.

A intensa cumplicidade de 33 mineiros criou laços inquebrantáveis. Uma lição da qual devemos extrair inúmeras reflexões, entre elas: a importância da organização como método de sobrevivência e, sobretudo, a prova inequívoca de que tudo é possível quando a solidariedade acontece, mesmo no escuro, ou melhor, no breu da Mina de San José. O entendimento entre pessoas soterradas, aparentemente condenadas à morte, transcendeu questões mesquinhas tão comuns ao cotidiano de homens livres, saudáveis e arrogantes. Se o Brasil atravessa uma séria crise ética — distorção de valores, banalização da desonestidade, mentiras travestidas de verdade, enfim, atitudes agudamente deploráveis —, por que não meditar sobre a altivez dos mineiros e a simplicidade do povo chileno? Mulheres que aguardaram os seus homens de vestidos novos, maquiagem bem dosada, arrumadas para a festa do encontro. Gente como a gente, a valorizar o heroísmo de uma Nação.

Não é possível, meu Deus, que o resgate dos mineiros não venha a provocar uma reconstrução na ordem social do mundo; não é possível que a bravura, o caráter, a lealdade não estanquem “As Veias Abertas da América Latina”, a plagiar o livro de Eduardo Galeno; não é possível que o destemor desses homens não sacoleje mentes avaras, perdidas na inveja, na falta de caráter, na desonra. Não. Não é possível! Perdoem-me os leitores, mas não posso comparar as emoções de hoje com as experienciadas com a conquista da Apolo 11, quando da chegada do homem à Lua. Ali fervilhava o apuro da tecnologia; aqui há uma convergência de fatores humanitários, além da perícia técnica.

O Chile ofertou ao mundo um exemplo de dignidade e perseverança na comunhão de elevadas fraternidades. Que a força dos 33 mineiros do deserto de Atacama se multiplique em cada um de nós, mediante a concretização de utopias que plasmam desejos porventura embutidos. Basta que os sentimentos prevaleçam. Nada mais.

Um comentário:

  1. QUASE MORRÍ DE TANTAS EMOÇÕES. FOI MESMO EMOCIONANTE. ME LEMBREI QUE AMAVA.AMAVA TANTO, TANTO QUE ATÉ SOFRI. MAS VALEU.E ETERNAMENTE VALERÁ.TUDO....

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