sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Maria, uma lembrança

Fátima Quintas





Ela me advertia que não corresse pelo quintal com tanta volúpia. A menina podia se machucar. Ela anunciava a chuva que não tardava a desabar. Ela cuidava da roupa com dengos especiais, a amaciar os vestidos de organdi, de modo que não picasse nas costuras sob os braços. Ela penteava meus cabelos, colocava birilos que logo escorriam pelas madeixas finas e levemente cacheadas. Insistia em modulá-los à direita, franja desfiada, jeito infantil: ajeitava ali, ajeitava acolá, fazia a recomendação para que não os assanhasse. Sentia prazer em vê-los arrumados. No dia de tirar retratos, os olhos se voltavam com maior zelo para os cabelos, como se o charme feminino neles se localizasse. Ela disciplinava os horários do lanche e, sobretudo, dos sucos, o de graviola, meu preferido. Ela se enredava com os trabalhos da casa, mas não deixava de vigiar-me. Ela tinha apenas 15 anos. Ela... Ela... Ela...

Nome simples, Maria. Maria de quê? De nada, Maria pura, retrucava irritada. Recordo-me perfeitamente do rosto: arredondado, gordinho, óculos de miopia, cabelos volumosos, bem cacheados. Curtos. Não sabia ler. Mais tarde, tentei ensinar-lhe. Ela não quis. Gostava daquela sábia inocência, olhava o jornal como quem lê as notícias com interesse, folheava atentamente, descobria os “reclames”, intuía a mensagem publicitária, acertava sempre. Ria com as fotos exibidas, adorava imitar os vestidos das damas e das antigas princesas que apareciam nos figurinos das costureiras. Foi não foi, copiava um modelito, e era feliz. Maria participou de toda a minha infância e adolescência, riso desconfiado, conversa que nunca acabava. Histórias de Canhotinho. Sua cidade.

O melhor lugar do universo. Canhotinho tinha de tudo. Praça, igreja, lojas, casas bonitas, ruas arborizadas, o paraíso. Ouvia a sua narrativa sem pestanejar: a mãe morreu cedo, o pai casou de novo; foi então morar em casa da tia porque assim evitava os desafetos com a madrasta, por quem não nutria sentimentos nobres. Admirava o pai, bonito, sereno, dono de um fiteiro situado na esquina mais movimentada da cidade. Vendia muito. Sustentava os filhos e a mulher com os ganhos auferidos. Maria era o símbolo de um saudoso atavismo. Não reclamava, todavia. Acatava o destino com uma certa altivez: “Gosto de ver os dias passar, a vida vai sempre, nunca volta. Queira não queira, tenho que seguir os seus passos. Moro em qualquer lugar. O mundo é igual, igual, igual. Redondo”.

Acordava cedo, tomava um banho com sabão de coco — só servia sabão de coco — alvinho, higiênico; lavava os cabelos com sabão Aristolino, bem lavados; usava vestidos sempre acinturados e colocava um avental branco, a lembrar toalhas de altar de igreja. Depois, rezava o terço; estava pronta para a labuta do dia. Tinha mania por limpeza, daí a alvura dos dentes. Religiosa, o que não a impedia de acatar os arroubos libidinosos. Namorar era o seu fraco. Aos 15 anos, já tocaiava os pequenos amores. A partir dos 18, ninguém a segurava. O corpo reclamava a chama das paixões; ela não tergiversava, acatava os desejos da carne.

Casou aos 25 anos, depois de uma longa lista de namorados. Ele bem mais velho: 40 anos. Homem experiente, porém responsável. Viveram juntos 10 anos. Morreu de infarto fulminante. Maria ficou só. Nunca pôde ter filhos. Casou em seguida e prosseguiu a saga dos inocentes.
Há muito não a vejo. Viajei, retornei, amadureci. Os dias se tornaram meses, anos, décadas; a memória, entretanto, reaviva passados, os meus. Sempre que penteio os cabelos a imagem de Maria reaparece, um olhar inquisidor que às vezes me mete medo. Ainda ouço o mantra: “Os cabelos devem ser macios como o veludo das almofadas. Não esqueça de acarinhá-los com sabão Aristolino”.

Foi ontem. O telefone tocou, a cobrar. De São Paulo. Era Maria. Voz firme, a sabedoria de sempre. Comunicava que ia se casar pela 5ª vez. Narrou a rica biografia sentimental. Ouvi os detalhes com a melancolia que a distância impõe. Ela estava lá. Eu estava aqui. E o vácuo cronológico reforçava a saudade.

Nem falou nos meus cabelos... Que diria ela ao vê-los brancos agora?

3 comentários:

  1. Este artigo lembrou a minha Maria. Também tive uma que ficou comigo 22 anos e já não sei se ainda vive. senti vontde de buscá-la e o farei no dia 20, em Alagoinha,no sítio Corredor, onde sempre viveu. Temo não enontrá-la mais. Ainda tenho esperança de reve-la.

    ResponderExcluir
  2. ESQUECE O PASSADO. PELO MENOS NÃO DEIXA QUE TE FAZA DOER.E VIVA E VIVA MUITO TODAS AS COISAS QUE POSSA. UM BEIJO DE HOJE.AMANHÃ E TALVEZ DEPOIS DE AMANHÃ.

    ResponderExcluir
  3. Todas as crianças deveriam ter uma Maria.
    Eu gostaria de ter tido uma...

    ResponderExcluir