sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Um cheiro, por favor

Fátima Quintas



Há quanto tempo não recebo um cheiro? Aquele afago pleno de mimos, com caprichos de sutileza, macio, doce, especial. Ah! que saudade do gesto brando e agradável! Uma prática requintada que se traduzia num apelo de leveza. Sim, nada mais singelo que um cheiro. Na minha juventude cheiros pululavam a toda hora, em qualquer lugar, nos encontros informais, nas festas de colégio, nas quermesses... Sem que desse por isso, os anos se passaram, as relações se tornaram mecanizadas, a humanidade acanhou-se diante do jeito de sentir, os meneios solidários desapareceram, mas a terra continua girando em torno do sol — Galileu morreu repetindo: mas ela gira, sim. E os sentimentos trocaram de expressões, embora na essência sejam os mesmos: o riso, o choro, a alegria, a tristeza; todos somos iguais na ciranda da vida. Fico a pensar: por que esquecemos o cheiro?

Onde anda o romantismo? O aprendizado existencial me chama a atenção para os antigos costumes, fora de moda, anacrônicos, escondidos em baús fechados a sete chaves, talvez infestados de bolor. Não desisto de perguntar: o que fizeram dos meus encantos? “Perdi o bonde e a esperança./ Volto pálida para casa”. Parece que Drummond nos socorre quando o cotidiano precisa de poesia. Assim, em momentos difíceis, lembro-me de “José”; quando os amores não são correspondidos, logo, logo, recorro à “Quadrilha”; se enfrento um obstáculo, a imagem mais clarividente que encontro é a “pedra no meio do caminho”; diante das vulnerabilidades, coração machucado, arremato: “Tenho apenas duas mãos/ e o sentimento do mundo”; se existe um descompasso em meus devaneios, apego-me à rima, “mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse Raimundo/ seria uma rima, não seria uma solução”. Como sobreviver sem os versos do poeta? Trago-os na mais recôndita porção da alma e de novo apego-me às suas transfigurações: “E depois das memórias vem o tempo/trazer novo sofrimento de memórias,/ até que, fatigado, te recuses/ e não saiba se a vida é ou foi”.

A memória persevera. Atiça a consciência. Reclama espaços num mundo prenhe de renovações. A vida é o que foi. O presente se faz breve, brevíssimo, enquanto o passado corresponde ao tempo consistente, sólido, verdadeiro. Bem sei que os dias fluíram... era ontem quando repetia ao despedir-me: um cheiro para você. Haverá coisa melhor que um cheiro? Ato gracioso, carícia das mais instigantes, oferecida sem abruptos rompantes, devagar, nenhuma presa, como se as emoções se tocassem levemente; sopro epidérmico, movimento gentil e toda a carga de uma ternura sem fim. Adeuses se traduziam em nuances de acalanto à sombra de manifestações infantis ou adultas. Um cheiro pelo telefone; um cheiro ao avistar o amigo; um cheiro de amor.

De repente, tomo um susto, um grande susto, sinto-me traída na minha história: os dias atuais ofuscaram a dimensão lúdica da rotina. Não há tempo para as belas tradições. Ecoam apenas ressonâncias de um pretérito não tão distante assim. Todos correm em direção ao nada, os carros buzinam, o frenesi se instala, ninguém conversa na esquina, as mãos se agitam em desordem, vou e volto, não faço coisa alguma, angustio-me para chegar pontualmente em compromissos marcados, a agenda está repleta... Nem sei o que se passa em mim, os sonhos esmoreceram em uma certa encruzilhada, e então... e então... e então! Estou cansada, o corpo pede um mínimo de sossego. Acordo, olho o relógio, atropelam-me os atrasos. Desperdiço horas, meses, anos... ando a patinar em gelo, escorrego na estrada da vida, levo um tropeço; não importa, ninguém viu. Há tanta gente nas ruas, nos mercados, nas lojas!...

E tudo isso para quê? A verdade é que o cheiro sumiu ou, pelo menos, perdeu a força majestática. Outro dia me surpreendi ofertando um cheiro. Foi quando deparei-me com o espanto de um impulso inopinado. Serei alguma ré de gestos à antiga? Acho que sim. Confesso: não me preocupa esta indisposição com o mundo excessivamente ocupado. Carrego uma saudade embutida no peito, um grito de pasmo, ás vezes, até mesmo uma frustração por não ter defendido com mais afinco os valores que me faziam feliz e que lamentavelmente feneceram. Por que não recuperar um dedo de prosa na hora crepuscular, um ingênuo flerte à entrada do cinema, um pouco de pó de arroz para embelezar a face, os frequentes “assustados” em casas de amigo, o guaraná Fratelli Vita e as suas gasosas de maçã e pera que tanto aplacavam a sede, o Corta-Jaca, lá em frente à casa do Navio, na Av. Boa Viagem, os maiôs Catalina, pretos, elegantes, que vestiam as candidatas do concurso Miss Brasil?

Que a modernidade se vanglorie de excelsos pragmatismos, que a tecnologia se desenvolva para atender necessidades crescentes, que a população se iluda nos corredores dos shoppings, a avistar montras habilmente sedutoras, que tudo aconteça em nome da celeridade dos tempos contemporâneos, celurares, DVDs, GPS, tudo, tudo... menos desprezar o cheiro tão genuinamente delicado, inocente e bucólico.

Um cheiro, por favor.

Um comentário:

  1. UM CHEIRO PARA VOCÊ...DAQUELES QUE PARA CHEGAR DEMORA..., ENFRENTA FILA...,ESPERA A OPORTUNIDADE..., SOFRE...,SE DECABELA..,ANDA PELO MUNDO ...E VAI POR ENTRE TANTAS COISAS... MAS ,CHEGA DE ALGUMA FORMA..JÁ SOADO DE TANTO PERCORRER O MUNDO.

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